domingo, 28 de agosto de 2011

O Mestre aparece quando o discípulo está pronto.


Ouço esse provérbio muito antes de começar a trilhar o caminho do "conhecer". Muitas são as pessoas que em bate-papos informais, consultas e amigos que pedem ajuda para encontrarem um Mestre que possa ajudá-las em seus sofrimentos. Nós, ocidentais, somos incumbidos desde crianças a esperar o "Salvador" para todos os nossos sofrimentos e com isso esperamos que uma outra pessoa venha e resolva todos os nossos problemas, sejam, financeiros, amorosos, familiares, enfim, não nos ensinam que somos responsáveis por nossos próprios atos e ações. Desenvolvemos uma cultura de dependência e condicionamentos que nos deixam frustados quando atingimos certa maioridade e nos deparamos com a realidade e percebemos que não é a mesma coisa quando nós éramos completamente dependentes de nossos pais (ou familiar) e nos sentimos injustiçados e indefesos perante situações adversas.


Passamos nesse momento a realizar uma busca, uma procura que se inicia e parece não ter fim. Começamos na adolescência com a busca pelo parceiro perfeito, aquele que nos irá realizar em todos os momentos de nossa vida, esperamos amor, sexo, dinheiro. Iludimo-nos na expectativa de que ele(a) irá suprir todos os nossos sentimentos, carência e nos esquecemos muitos vezes de retribuir para que isso se torne um ciclo de retribuição, mas como estamos condicionados a dependência, acabam-se muitas vezes os romances, namoros, casamentos e culpa-se o outro(a) por essa desilusão e aumenta a ânsia de encontrar algo, alguém. É comum encontrarmos pessoas em nossas vidas que reclamam do parceiro, por ele não dar a devida atenção, mas até que ponto EU estou retribuindo essa atenção? E geralmente o final é uma separação, com apontamentos de culpados e vítimas.


Em seguida buscamos no emprego ou na faculdade a esperança de encontrar a profissão que irá nos estabilizar financeiramente, a fonte da busca de muitos sonhos, o alicerce para encontrar a pessoa perfeita e viver feliz para sempre. Com o passar do tempo esse sentimento de realização começa a decair e percebemos que lutar para alcançar esse objetivos são árduos e precisamos nos sacrificar para almejar um cargo, passar com boas notas nas provas e trabalhos da faculdade. E novamente caímos naquela sensação de vazio, parece que falta algo para me sentir completo. Preciso encontrar a solução do meus problemas em alguém, colega, chefe, professor, mas eles muitas vezes não suprem essa ânsia e acabamos trocando de empresa, mudando ou trancando de curso ou até mesmo de faculdade. Criamos desculpas para o nossa total sensação de dependência, que a empresa não supria minhas expectativas ou meu chefe não me dava o apoio necessário, o curso não era o que esperava ou os professores não ensinam direito. E novamente tenteamos sair como vítimas.


Com o passar do tempo, pensamos que devemos encontrar alguém que supra as nossas dúvidas de existência, alguém que nos salve desse desespero, dessa sensação de vazio. Começamos a busca por uma religião, por gurus, mestres que no começo nos fascinam com promessas de melhorias em todos os âmbitos de nossa vida. Chegamos em casa com a sensação de ter achado o "Salvador", mas com o passar do tempo, percebemos que esse ser que intitulados como Mestre, tem suas falhas e novamente nos frustramos e sentimo-nos vazios, porque em determinado momento ele nos disse que não sou especial ou deixou de fazer algo que para mim era importante e muitas outras situações que ocorrem em nossas vidas. E novamente começamos a criar desculpas para as nossas desilusões, tais como – a religião não presta; aquele fulano se diz mestre, mas não sabe nada; as pessoas não condizem com o que dizem e assim por diante.


E assim são em todas as situações de nossa vida, sempre buscamos e acabamos com a sensação de estarmos sendo enganados. Por quê? – Muitos se perguntam. O que estou fazendo de errado? Qual o caminho que devo seguir? – E com isso culpam a algum Deus ou Demônio, aos pais ou formadores de opinião, ao governo e caem em depressão ou se tornam pessoas rudes consigo mesmo, com os que estão a sua volta ou com a própria vida.


Perceberam o quanto estamos enredados nessa cultura de dependência? Tudo começa na infância com nossos pais, passamos pela adolescência em busca da pessoa perfeita e na fase adulta em busca do melhor emprego e crenças/religião e na velhice por segurança. Cada vez é maior a busca por um "Salvador", algo ou alguém que nos complete. Procuramos a sabedoria em alguém iluminado, com a expectativas de nos proporcionar todas as respostas, alguém que seja o tutor e nos guarde pelo resto de nossa vida, mas esquecemos que os únicos que possuem essas respostas somos nós mesmos. Somos nós que experenciamos nossa vida e não o Mestre, somente nós temos o poder em nossas mãos de decidirmos o que desejamos.


Acredito que esse dito popular deveria ser diferente: "O Mestre aparece, quando o discípulo está pronto para ouvir!". Se prestarmos atenção, nós somos Mestres de nós mesmo, porque aprendemos com os vários Mestres que entram em nossa vida. Devemos fazer um re-interpretação desse ditado. Somos discípulos de nossos pais, quando nossa Mãe nos ensina o ato de amar com aquele olhar de afetuosidade, aprendemos os limites com o olhar de reprovação. Com nosso Pai aprendermos a valorizar o que possuímos, a agradecer por cada obstáculo vencido. Os professores na escola e na faculdade que nos tornam pessoas de opinao. Os colegas de trabalho que nos incentivam a buscar o aperfeiçoamento. A pessoa amada que nos mostra o quanto somos importante, e geralmente nos influencia a mudar atitudes e pensamentos para sermos melhores e manter um relacionamento e, principalmente, nos ensinam à reciprocidade através da correspondência dos sentimentos e empatia.


E por ultimo, ao mediador que buscamos e muitas vezes encontramos. Não devemos esperar que vá aparecer um guru e ele será o tutor por toda a nossa vida. Devemos aprender a identificar aquele que irá nos ajudar a cuidar do nosso sagrado. Acredito que o bom Mestre é aquele que ensina seus discípulos a não terem dependência, mas sim, ensina a caminhar com independência, o ajuda a criar consciência da pessoa que é e incentiva a seguir sempre adiante em sua verdadeira liberdade. Dessa forma, criando pessoas conscientes de suas vidas, suas experiências e seus amores. Cria pessoas adultas com lucidez em suas escolhas, fazendo com que elas encontrem equilíbrio em suas vidas. 


Isso é estar de bem consigo mesmo, isso é auto-conhecimento. O fato de sermos humanos e tratarmos os indivíduos a nossa volta como tais, é estar em equilíbrio. Mestres entram em nossa vida o tempo todo, cabe a cada um ouvir com atenção e obterá a resposta. Ter responsabilidade pelos atos e comportamentos é estar em sintonia e ser independente, não existe culpado, só aquele que aprende a encontrar o verdadeiro Mestre, que é a Si Mesmo, encontrará a liberdade e o Amor. Pois aquele que não segue a vida com Amor, não vive, apenas espera um futuro que nunca chega. Aquele que sabe Amar, vê em sua vida possibilidades, oportunidades e riqueza. Seja o seu Salvador e aprenda a Viver.
Por Corujão


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sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A Lenda dos Kupe-dyeb

(Índios-morcego)


Conforme recolhido entre os Apinagés por Curt Nimuendaju (1939)
e traduzido por Alberto da Costa e Silva


No sertão de São Vicente, que se estende próximo ao Araguaia, existe a montanha Morcego. Nela há uma grande caverna com uma entrada em baixo, enquanto que bem no alto há um espécie de janela. Ali moravam antigamente os Kupe-dyep, seres de forma humana, mas com asas de morcego.

Um Apinagé flechara um veado perto da rocha do Morcego e acampara ali a noite porque já era tarde. Mas, enquanto ele dormia, os Kupe-dyeb vieram voando esmagando seu crânio com seus machados.

Como ele já estivesse há muito tempo ausente, seus parentes seguiram as suas pegadas e acharam seu cadáver. Em torno dele, viram também muitas pegadas, mas nenhum traço da chegada ou partida dos malfeitores.

Por causa disso durante muito tempo os Apinagés evitaram passar a noite naquela região, até que um dia dois caçadores e um menino decidiram acampar ao pé da rocha do Morcego. Depois do anoitecer, ouviram cantos vindos de dentro da montanha. Então o menino ficou assustado e se escondeu em uma moita longe do acampamento dos dois homens. Logo após, os morcegos vieram voando e mataram os dois caçadores, mas o menino escapou, e na aldeia contou o que ocorrera.

Então os guerreiros Apinagés de todas as quatro aldeias saíram juntos para destruir os Kupe-dyep. Quando eles chegaram à rocha do Morcego, imediatamente ocuparam a entrada da caverna, onde amontoaram lenha. Enquanto isso, outros procuravam fazer uma volta para alcançar a janela da caverna. Mas isto era mais difícil do que haviam suposto, e eles ainda não tinham alcançado o seu objetivo, quando aqueles que tomavam conta da entrada puseram fogo à pilha. Assim os kupe-dyep voaram em atropelo pela abertura superior, sem serem feridos pelas setas dos Apinagés. Eles voaram pra o Sul, e diz-se que ainda estão vivendo em algum lugar por lá.

Quando a fumaça diminuiu, os guerreiros Apinagés penetraram na caverna, achando um grande número de machados abandonados pelos kupe-dyeb em sua fuga. Bem no fundo da caverna, escondido por uma pedra, um menino de cerca de seis anos de idade. De início, eles queriam mata-lo, mas um índio decidiu criá-lo e levou-o consigo.

Quando os Apinagés em sua viagem fizeram seus leitos de folhas de palmeiras no chão, determinaram também o lugar onde deveria dormir o pequeno kupe-dyeb, mas ele não ficou deitado: chorava e olhava constantemente para o céu. Como não queria deitar-se de modo algum, seu dono teve subitamente uma idéia. Lembrou-se de que na morada dos Kupe-dyep não havia camas no chão nem tão pouco postes para dependurar redes, mas havia muitas vigas horizontais. Trouxe um varapau e o colocou horizontamente apoiado nas forquilhas de galhos de duas pequenas árvores vizinhas. Logo que o menino viu isso, trepou em uma das árvores de tal modo que se dependurou no vara pau pelos joelhos, a cabeça para baixo. Encolheu a cabeça, cobriu o rosto com os braços cruzados, e então dormiu calmamente nesta posição.

Este menino viveu pouco tempo entre os Apinagés, pois morreu logo. Um dia eles o observaram deitado no chão cantando. “U-ua Klunã Klocire! Klud pecetire!” Então, ele agarrou o cangote com as mãos. Quando os Apinagés perguntaram-lhe sobre isto, disse que seus companheiros de tribo dançavam daquele modo. Os Apinagés ainda cantam a canção do Kupe-dyeb.
FONTES:
Conto recolhido entre os Apinagés por Curt Nimuendaju e publicado em seu livro The Apinayé (versão inglesa de Robert H. Lowie, The Catholic University of America Press, Washington, 1939, págs. 179-180).
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SILVA, Alberto da Costa e (org). Antologia de Lendas do Índio Brasileiro. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, 1957, p 215-217.





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quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Liberte-se


Sersenfé se considerava um grande mestre porque havia estudado todos os livros de todas as escolas de mistério da face da terra, sua busca pelo conhecimento o havia conduzido a lugares, a iniciados e a tomos de magia que antes ele nem sabia ser possível existir.

Então, refletindo sobre sua vida e onde já tinha passado, Sersenfé percebeu que existia apenas um lugar que ele não havia visitado. Era o de um ancião que vivia solitário em uma choupana no local mais inacessível da floresta, era um homem estranho que não era coberto de títulos e comendas como os outros mestres que até então ele já encontrara, era uma pessoa que vivera toda sua vida nas florestas e de lá extraira tudo o que sabia.

Então ele foi visitar este homem em busca de conhecimento. Enquanto o ancião servia lentamente chá em seu copo, Sersenfé comentava os livros antigos dos mestres, os exercícios dos gurus iogues, analisava os textos das tradições secretas de conhecimento, interpretava as histórias e as tradições dos grandes iniciados, divagava sobre os antigos processos de reflexão e hierarquias ocultas. Fez todo o possível para impressionar seu anfitrião, na esperança que este o aceitasse como discípulo.

Enquanto falava, o ancião continuava enchendo seu copo, até que o copo transbordou e o chá começou a espalhar-se pela mesa inteira. Nessa hora, assustado, Sersenfé parou de monologar e fez uma pergunta:

- O que o senhor está fazendo? Não vê que o copo já está cheio e nada mais cabe em seu interior?

- Sua alma é como este copo. Como eu posso ensinar-lhe a verdadeira arte do conhecimento se ela já está cheia de teorias e sabedorias? - respondeu o ancião.



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quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Canção de Amergin


Do Livro das Invasões ou 
Livro das Conquistas da Irlanda
(Lebor Gabála Eren)

Os Milesianos são a última onda migratória a se assentar na Irlanda. Após derrotarem os poderosos Tuatha de Danann, o povo liderado por Mil Espáine se estabelece nas terras irlandesas e encerra o Livro das Invasões. De todos os fatos narrados no texto mitológico, a invasão dos milesianos parece ser a que mais possui equivalência histórica, por sua associação com os Goidels, ancestrais dos modernos irlandeses. Segundo o Livro das Invasões, os Milesianos vêm da Cítia e se instalam na Península Ibérica, na região onde hoje fica a cidade portuguesa de Bragança (Trás-os-Montes, uma área rica em vestígios da ocupação celta pré-romana). De lá, partem para a Irlanda, onde aportam durante Beltaine, após demonstrarem grande conhecimento de magia. Um dos mais belos exemplos dessa magia é o poema recitado por Amergin, o primeiro bardo da Irlanda, ao desembarcar.

Sou uma brisa do oceano,

Sou uma onda do mar,
Sou um ruído do oceano,
Sou um veado com sete pontas em cada galho,
Sou um falcão sobre o rochedo,
Sou a mais bela das flores,
Sou um javali,
Sou um salmão num lago,
Sou uma lagoa numa planície,
Sou uma palavra de sabedoria,
Sou uma lança que trava batalhas,
Sou um deus criador do fogo sagrado.

Quem explica a autoridade das montanhas?
Quem, senão eu, sabe onde o sol se porá?
Quem adivinha as isades da Lua?
Quem traz o gado da casa de Tethra e o separa?
A quem sorri o gado de Tethra?
Quem forja as armas de monte em monte?

Invocai, Povo do Mar, invocai o poeta, que este possa tecer um feitiço para vós.
Pois eu, o Druida, que gravou letras em ogham,
Eu, que separo os guerreiros
Aproximarme-ei das fortalezas dos Sídhe e procurarei um poeta astuto e com ele prepararei sortilégios.
Sou uma brisa do oceano.




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terça-feira, 23 de agosto de 2011

Mais uma celebração!






Nyctaluz Noctula





Gira a roda do ano de novo
é momento de celebração
alegria ao rever nosso povo
só contento vai no coração

Encontramos na hora marcada
combinados, de novo afinal
organizados, já a hora passada
é chegado mais um festival

Lá Brigid nos espera radiante
com seu fogo intenso a brilhar
Novamente estamos no instante
com os irmãos outro comemorar

Alegiras, a noite vem calma
Trazendo os seres da floresta
Felicidade e energia vai nalma
Tudo vibra, é hora de festa

Auxiliando companheiros antigos
E também aos rescém chegados
É tão bom estar-se entre amigos
Vendo todos assim maravilhados

Voltando aos nossos lares agora
Vivenciando ainda esta celebração
Sabedoria que passou em boa hora
Nos trazendo aprendizado e lição

Mais um Oimelc já se passou
Gira a roda do ano outra vez
Na primavera que tempo esquentou
Na semente que ao chão se fez


 




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segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Sacerdotes e Divindades Celtas

Resenha do Livro: Sacerdotes e Divindades Celtas

JUBAINVILLE, H. D'arbois de. Os Druidas. Os Deuses Celtas com Formas de Animais. São Paulo: Madras, 2003. ISBN 85-7374-674-2. Resenha originalmente publicada em Notícias Asgardianas : boletim bimestral de Arqueologia, História e Cultura Medieval, n. 44, dezembro de 2003.

Escritos entre os anos de 1904 e 1905 quando uma doença prendia-o ao leito e mais tarde foi o material por ele usado em suas aulas, Jubainville oferece ao leitor/estudioso brasileiro uma rica fonte de estudos acerca da religião celta. 

Jubainville com um texto simples e preciso faz um percurso histórico acerca da classe sacerdotal dos Druidas, apontando a suas funções dentro da sociedade celta, sua importância para o aprendizado tanto da alta magia como também da arte da composição e da narrativa, tanto da história do povo como o próprio aprendizado druídico. Todo esse aprendizado era transmitido oralmente o que obrigava tantos os "alunos" como os "professores" a exercitarem constantemente sua memória. Ao descrever o aprendizado tanto dos druidas como dos bardos, que freqüentavam por mais de vinte anos as escolas mantidas pelos Druidas, Jubainville nos mostra como funcionavam essas escolas e a importância da manutenção da oralidade: 

Os Judeus e os Cristãos têm um livro, a Bíblia; os Maometanos têm um livro, o Alcorão; os Druidas também tinham um livro, mas ele não estava escrito. Era uma compilação de versos e essa compilação era tão desenvolvida que, para conseguir sabe-la bem, ou mesmo para compreende-la mais ou menos, foram necessários vinte anos de estudos a um certo número de alunos. (JUBAINVILLE: 2003 – 57). 

Mas, infelizmente toda essa "estrutura" das "escolas" mantidas pelos druidas e todo o conhecimento oriundo da oralidade com a conquista romana foi quase que totalmente perdido. Alguns pequenos focos de resistência foram mantidos e poucos druidas tanto na Gália como na Bretanha mantiveram seus alunos e desta forma conseguiram preservar um pouco do seu conhecimento e história, mantidos pela oralidade. 

As conquistas romanas empreendidas nas povoações celtas da Gália e da Bretanha não foram capazes de destruir completamente todo o poder que os druidas possuíam dentro da sociedade. Durante a romanização dos celtas os druidas perderam muito de seus alunos que, por imposição, recebiam uma educação romana, aprendendo o latim e os costumes do conquistador, numa tentativa desses de exercer maior influência sobre os conquistados mas, havia aqueles que se recusaram a isso e deixavam seus filhos sob a guarda dos druidas. 

A grande epopéia que conta a criação das vacas de Cooley mostra-nos o Druida Cathu rodeado de alunos aos quais dá suas lições. Na redação mais antiga, os alunos são em número de cem. O escriba cristão ao qual devemos esse texto teve trabalho para constatar esse número: são, escreveu, "cem estouvados que estudam perto de Cathu a ciência druídica" (JUBAINVILLE: 2003 – 80,1). 

Todo o registro que chegou até nós – e os utilizados por Jubainville – são relatos dos conquistadores entre eles, De Bello Gallico, escrito por Julio César e Anais, de Tácito. Essas fontes apresentam uma visão do conquistador já impingindo certos juízos de valores às práticas sociais do povo conquistado. Jubainville ao utilizar as fontes romanas para as suas pesquisas vai nos mostrando outros aspectos da sociedade celta que, ficaram encobertos sob o véu da conquista. 

A segunda parte do livro apresenta um estudo sobre os deuses celtas e as suas formas de animais. Analisando o mais famoso épico irlandês A razia das vacas de Cooley (Tain Bô Cualngé) e o percurso do herói Cûchulainn a serviço da rainha Medb, o autor vai nos apresentando o panteão celta e as formas de animais que os deuses tomavam seja para proteger e guiar o herói ou para punir alguém que infringiu alguma lei ou tabu. 

A deusa da guerra Morrigan aparece para Cûchulainn em vários momentos da narrativa para provocá-lo. Ela aparece ora, como uma loba cinzenta, ora como uma vaca branca de orelhas vermelhas ou um corvo. Esse último é o arauto das batalhas mais sangrentas e da morte. Analisando as formas de animais assumidas pelos deuses Jubainville nos mostra as metamorfoses sofridas pelos deuses para poderem exercer seu poder e, medirem forças com os mortais que, como Cûchulainn, ao longo da epopéia assemelha-se aos deuses. Ao analisar as formas de animais assumidas pelos deuses o autor mostra a profunda ligação dos celtas com a natureza e a sua obediência aos ciclos sazonais aos quais estava ligada a sua sobrevivência: 

"Os pagãos, a princípio, adoraram a natureza tal qual ela se apresentava a eles: em primeiro lugar, o céu de onde vêm o dia, o calor e a tempestade; em segundo lugar, Omar, tão propício e freqüentemente tão perigoso para os navegantes; e em terceiro lugar a terra que habitamos". (JUBAINVIILE: 2003 – 107). 

Esta análise realizada por Jubainvelle dos druidas e das formas animais dos deuses oriundas do seu material didático foi e ainda é de grande importância para o entendimento do funcionamento da sociedade celta e da sua religião. Esta obra vem preencher uma lacuna nas traduções dos estudos acadêmicos a respeito dos celtas no Brasil. Uma pesquisa de grande importância juntamente com as suas outras obras que, ainda carecem de tradução e, apesar de já contarem com mais de um século de existência ainda são fundamentais.







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Índios, Silêncio!


Traduzido de "Neither Wolf nor Dog. On Forgotten Roads with an Indian Elder" - Kent Nerburn por Leela

Nós os índios, conhecemos o silêncio.
Não temos medo dele.
Na verdade, para nós ele é mais poderoso do que as palavras.

Nossos ancestrais foram educados nas maneiras do silêncio 
e eles nos transmitiram esse conhecimento.
"Observa, escuta, e logo atua", nos diziam.
Esta é a maneira correta de viver.
Observa os animais para ver como cuidam se seus filhotes.
Observa os anciões para ver como se comportam.
Observa o homem branco para ver o que querem.
Sempre observa primeiro, com o coração e a mente quietos, e então aprenderás.
Quanto tiveres observado o suficiente, então poderás atuar.
Com vocês, brancos e pretos, é o contrário. 
Vocês aprendem falando.

Dão prêmios às crianças que falam mais na escola.
Em suas festas, todos tratam de falar.
No trabalho estão sempre tendo reuniões nas quais todos interrompem a todos,
e todos falam cinco, dez, cem vezes.
E chamam isso de "resolver um problema".
Quando estão numa habitação e há silêncio, ficam nervosos.
Precisam  preencher o espaço com sons.
Então, falam compulsivamente, mesmo antes de saber o que vão dizer.
Vocês gostam de discutir.
Nem sequer permitem que o outro termine uma frase.
Sempre interrompem.
Para nós isso é muito desrespeitoso e muito estúpido, inclusive.

Se começas a falar, eu não vou te interromper. Te escutarei.
Talvez deixe de escutá-lo se não gostar do que estás dizendo.
Mas não vou interromper-te.
Quando terminares, tomarei minha decisão sobre o que disseste, mas não te direi se não estou de acordo, a menos que seja importante.
Do contrário, simplesmente ficarei calado e me afastarei.
Terás dito o que preciso saber.
Não há mais nada a dizer.

Mas isso não é suficiente para a maioria de vocês.
Deveríam pensar nas suas palavras como se fossem sementes.
Deveriam plantá-las, e permiti-las crescer em silêncio.

Nossos ancestrais nos ensinaram que a terra está sempre nos falando,
e que devemos ficar em silêncio para escutá-la.
Existem muitas vozes além das nossas.
Muitas vozes.
Só vamos escutá-las em silêncio.



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sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Nos andes


Por Nuvem que Passa

Conta-se que vivia em alto ponto nos Andes um condor fêmea.

Por razões que existem para justificar essa história essa condor estava chocando 11 ovos.

Sim, 11 ovos no mesmo ninho, nas alturas colocados sob a grande condor, protegidos dos ventos gelados.

Do nada que eram, possibilidades erráticas, começaram os ovos a se tornar sementes, potenciais seres, os genes misturados, vindos de sua longa estrada traziam consigo o aprendizado de tantas combinações.

Num certo momento os ovos começaram a ter um contato telepático entre si.

E passaram a conversar.  
Sobre o que conversavam?
Ora, falavam sobre coisas de ovos, sobre suas fantasias de estar vivendo, da "realidade" que criam viver.

Com o passar do tempo os ovos notaram que um estado de limitação, de opressão se estabelecia entre eles.

Sentiam um certo desconforto e parecia que o desconforto aumentava com o passar do tempo.

Algo os limitava, algo os prendia, mas não sabiam o que.

Não percebiam que estando se desenvolvendo era natural que a casca os fizesse sentirem-se presos.

Então um entre eles resolveu ser o Messias, o que sabia da realidade final das coisas.

- Irmãos, pregava ele, tive uma revelação. Descobri a causa de nosso desconforto, de nossa crescente ansiedade.

Silêncio! Aquilo era importante.
- O vitelo irmãos, (o alimento que o pássaro vai comendo enquanto está no ovo) é o vitelo que aumenta nossa tristeza, nossa sensação de desconforto.

- Sentimos desconforto porque estamos nos tornando mais materiais, mais pesados, temos que nos espiritualizar irmãos, só se nos espiritualizarmos vamos reencontrar a felicidade e leveza perdidas.

Ora, isso era fato, um pássaro no ovo comendo vitelo vai ficando mais pronto e é claro que sente mais os limites do ovo.

Mas não sabiam desse fato e a "revelação" do pregador parecia ter total sentido.

Aí criaram o movimento fundamentalista:

"Só comemos vitelo suficiente para não morrer".

A nova moda era espiritualizar-se para recuperar o estado anterior de maior leveza e dissolução .

Como o crescimento acabou mais lento acreditavam que o pregador lhes revelara sublime verdade e logo declararam:

- Alimentar-se é pecado!

- Ficar mais denso é pecado!

Crendo nisso viveram por um tempo numa languides, numa indolência, desnutrida existência, onde a pasmaceira resultante era tida por paz...

Mas um dos ovos, sempre tem esse um, revoltou-se contra aquilo.

- Ora, pensava, se sempre me alimentei por que vou deixar de fazer isso agora, me sinto fraco, frágil, vou é comer.

E voltou a comer.

E comendo plenamente sentiu que estava oprimido, é verdade, sentiu limites, mas não deixou se angustiar por isso e descobriu que sentir os limites de sua condição não era necessariamente associado a angústia e a exasperação.

Era um condicionamento responder assim.

Foi logicamente excomungado da comunidade, mal exemplo a ser negado.

Ovos não conhecem cores, senão teriam dito que ele era um mago negro! ; )

Aí se ovos tivessem listas de discussão iam debater se magia negra é aquela que manda comer o vitelo e magia branca é o que, em beneficio da espiritualização, manda deixar de comer.

O fato é que ele continuou a se desenvolver enquanto os outros estavam estacionados.

Certo dia foram todos, telepaticamente, pregar para o rebelde.

Reparem que no estado de ovos eles não fazem nada, apenas imaginam que fazem.

Como ovos não há agir, só fantasia de agir, por isso podem se dedicar as doutrinas mais estapafúrdias e sem nexo e ainda as sustentar por uma vida.

E lá iam pregar, mudar o diferente, o perigoso, o que com seus atos negava o senso comum.

E quem nega com atos é sempre mais perigoso que quem nega em teoria.

Converte-lo, salvar sua alma.

O rebelde foi perdendo a paciência com aquela conversa lamurienta, pois sem comer eles não conseguiam mais pensar e ficavam repetindo a mesma frase alegando ter sido revelada pelo grande deus "Ovão" .

Não era um diálogo, era um monólogo repetitivo de frases decoradas contra a argumentação do rebelde, com suas habilidades plenas por estar bem alimentado.

O rebelde num movimento brusco, com sua parte mais densa (o bico) quebrou a casca do ovo.

Para quem viveu no interior escuro do ovo a luz do dia entrando era trevas e no susto desapareceu do contato telepático com seus irmãos.

Terror, o pregador, aproveitador como todo bom pregador, já pregou:

- Estão vendo o que acontece a quem desobece os sagrados mandamentos? Vamos rezar ao Ovão irmãos pela alma desse pecador que se perdeu.

Para eles o rebelde havia morrido.

Mas para o mundo aqui fora, para a condor mãe o primeiro dos ovos vingara e ele nascera.

Tudo era novo.

A principio sentiu terror, depois êxtase.

E quando contemplou aqueles olhos enormes, aquele ser poderoso, novo medo.

Quem seria?

O diabo a castigá-lo? Deus a puni-lo por ter contrariado o pregador e se alimentado?

Com os dias o medo deu lugar ao assombro e este ao fascínio de estar vivo.

Nem deus nem demônio, só sua mãe.

O azul do céu, o sol, os picos nevados, a Mãe Condor que agora lhe dava alimento. Dormia muito ainda, pouco notava das saídas e voltas  da mãe.

Noite, estrelas, lua, estava extasiado.

Então se lembrou!

Seus irmãos, suas irmãs naquele estado limitado dentro dos ovos, crendo no pregador .

Agora ele sabia que era parte do crescimento sentir desconforto, sentir limites.

Fugir disso era fugir do sair do ovo. Do vir para este mundo, este sim real.

Contou a sua mãe que queria encontrar um meio de falar com seus irmãos e explicar o que descobrira.

Ela riu.

- Mesmo que pudesse meu filho, como falaria de céu azul? De vento?

Como falaria dos picos nevados? Quer mesmo ajudar, então te aninha quando fores dormir aqui, junto aos ovos e transmite teu calor, assim podes ajudar que choquem mais rápido.
Mesmo lentamente, um a um os ovos foram sendo chocados e nasciam.

Ao final de algum tempo todos nasceram, quer dizer quase todos.

O pregador não nasceu, espiritualizou-se tanto que gorou...

Este conto me foi passado por um xamã quando cheguei na presença dele cheio das minhas certezas sobre "evoluir" e "espiritualizar".



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quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Celtas e cultura castreja


Autor - Ricardo da Costa (UFES) 
 
A cultura castreja (c. III a.C. - I d.C.): a longa tradição de resistência ibérica

Podemos afirmar que existe um hiato na arqueologia medieval lusitana para as questões sobre as quais nos propomos debruçar neste ensaio, face aos raros trabalhos publicados. Basicamente, os trabalhos sobre Arqueologia medieval portuguesa se encontram publicados em Arqueologia e História (órgão da Associação dos Arqueólogos Portugueses, 10 volumes, Lisboa, 1922-1932), mas contém essencialmente estudos sobre epigrafia, numismática e história da arte (MARQUES, 1988: 43). Uma importante exceção é o estudo das escavações sobre a batalha de Aljubarrota realizado por PAÇO (Dicionário de História de Portugal, vol. I: 109-111).

Mas não exageremos; nossa distância aumenta nosso desconhecimento. Face a esta dificuldade, percorremos um pequeno trajeto em busca de pontos em comum com o universo maior de nossas pesquisas: a guerra e seus componentes (para o caso luso, razias e fossados), nativos ibéricos e "estrangeiros", mecanismos de defesa relativos ao estabelecimento geográfico, utilização do habitat natural, etc.

É aqui que se insere a cultura castreja. De modo genérico, podemos situar os castros portugueses numa longa tradição cultural de resistência "local" (ibérica) ao que é invasor, mas isso já faz parte de nossas conclusões.

O conhecimento de resistências em forma de mecanismos de defesa militar anteriores ao processo de Reconquista, ajuda a entender a mentalidade bélica em que se insere o "estado de guerra permanente" (conceito utilizado por MATTOSO, s/d: 478, para o período imediatamente anterior à Reconquista clássica, que compreende os séculos VIII-XI) dos séculos subseqüentes. A compreensão e a utilização dos métodos arqueológicos é de importância fundamental, principalmente para a Alta Idade Média, e o caso ibérico ainda tem um vasto campo a ser explorado.

Antes de abordarmos o assunto propriamente dito, é necessário que deixemos claro a nossa posição frente à relação entre História e Arqueologia. Os acalorados debates que surgiram entre historiadores e arqueólogos quanto a uma primazia disciplinar estão hoje totalmente ultrapassados (MOBERG, 1986: 187). O decreto de Lênin criando a Academia de História da Cultura Material da URSS em 1919, assumindo as atribuições da Comissão Arqueológica do regime czarista, veiculou a nova disciplina com o materialismo histórico (PESEZ, 1993: 177). Hoje, a Arqueologia ainda é a melhor via de acesso à história da cultura material, porém isso não restringe seu campo a abordagens meramente materialistas:

"...inseridos na paisagem ou preservados nas coleções, os traços do passado, monumentos ou objetos, são pretexto para um trabalho constante do imaginário (...) Objetos e monumentos, através de sua conservação tão aleatória quanto ocasional, questionam e interrogam..." (SCHNAPP, 1993: 72).

Portanto, a Arqueologia é História, ou melhor, existe um entrelaçamento tão grande que as diferenças podem, grosso modo, ser encontradas nas técnicas utilizadas pelos profissionais de ambas as áreas. Definindo melhor: a Arqueologia responde a perguntas que os documentos escritos não podem nos dar; mas o que são os documentos senão material arqueológico? São eles cultura material (PESEZ, 1993: 181) da mesma forma que tijolos, moedas ou monumentos.

Mais: o documento escrito é também um monumento, na medida em que foi forjado por mãos humanas. Em ambos os casos a interferência cultural se dá através de mecanismos inerentes ao gênero humano; homo sum et, humani nihil a me alienum puto ("Sou homem: nada do que é humano eu considero estranho a mim". Frase de Terêncio (Terentius) (195-159 a.C.), comediógrafo romano (africano) - BOWDER, s/d: 251-252).

Concluindo, podemos afirmar a indissolubilidade disciplinar entre História e Arqueologia, notadamente para a História Antiga e Medieval. A similaridade das definições de ambas as disciplinas permite essa asserção:

"Arqueologia pode ser definida como o estudo das coisas antigas quando estas pertencem à cultura e à sociedade humanas. Como disciplina, diz respeito tanto a particularidades do passado, em tempos e lugares específicos, como a generalizações sobre acontecimentos passados" (WILLEY, 1987: 83).

Além disso, elas possuem uma convergência em seu objeto de estudo: o homem, motivo maior da busca histórica.

Nessa perspectiva, as possibilidades do imaginário na Arqueologia a aproximam da História; nossas constantes recriações do passado multiplicam-se numa proporção geométrica, com a abertura de mais uma frente disciplinar interagindo mutuamente no nosso campo, o das Ciências Sociais. Uma "ciência" aberta às possibilidades da imprevisibilidade da ação humana. Os vestígios materiais nada mais são do que isso: a concretude da abstração humana.

Arqueologicamente, um castro (crasto, castelo dos mouros, couto dos mouros, citânia, cêrca, cividades, castelejo, castelares, castelos) (SERRÃO, 1961-1971, vol. II: 532) é um vestígio de uma povoação fortificada, muralhada com uma ou mais fileiras de pedras, um ou mais fossos, e quase sempre no topo de um cabeço (SANTOS JÚNIOR, 1957: 28), monte com cume arredondado e algumas vezes com encosta íngreme, geograficamente adequado para o domínio da paisagem local e uma observação à distância.

Os castros eram núcleos populacionais concentrados, forçados a um isolamento defensivo (SERRÃO, 1961-1971, vol. II: 532). Este é o habitat castrejo típico. Seus principais povoados estavam instalados em colinas de substrato granítico, e as populações castrejas utilizaram amplamente este material, principalmente para a construção das muralhas, feitas de blocos de granito toscamente recortados. É o que Fabião designa por "civilização do granito", embora o autor afirme que esta caracterização seja mais nítida em sua fase final (FABIÃO, s/d: 192).

Nesta cultura castreja, as casas possuíam planta circular, com cerca de 5 metros de diâmetro. Suas paredes eram formadas por pequenas pedras unidas com cascalho, sem qualquer argamassa. Possuía piso de saibro batido; em seu interior, num canto, uma lareira, revestida de argila; ao centro, um buraco para um poste que suportava a estrutura de cobertura, de colmo, material perecível e de formato cônico (FABIÃO, s/d: 193; SARAIVA, 1991: 20-23). Na parte da frente um átrio, algumas vezes com um forno ou forja.

A cultura castreja localizava-se essencialmente nos distritos de Minho e Trás-os-Montes, ao norte do rio Douro. Para o período que compreende o auge da cultura castreja, esta região era constituída por duas zonas culturais distintas: litoral (que chamaremos zona 1) e interior (zona 2) (FABIÃO, s/d: 190). O conhecimento destas zonas é desigual; ao litoral, com mais de 100 anos de escavações contínuas, opõe-se o interior, quase que totalmente desconhecido. Optamos pela zona 1.

Na região do Minho o clima é úmido, com chuvas freqüentes (até 3.000 mm anuais). Sua geografia é entalhada por uma série de vales paralelos, com falésias delimitando as praias estreitas. O solo, naturalmente pobre, tem sua fertilidade assegurada pela adubação de algas marinhas (Geografia Ilustrada - Europa, 1972: 16-17).

Trás-os-Montes ocupa uma área montanhosa, região de forte erosão secular, com uma topografia movimentada e de vales profundos como os de Tua, Tâmega e Sabor. Seus rios correm por escarpas com altitudes superiores a 1.200 metros. Tal relevo, que assistiu ao surgimento da cultura castreja em território lusitano, explica em parte seu isolamento em pequenos núcleos populacionais.

Para a zona 1, os castros mais famosos são os de Cividade do Terroso, em Póvoa do Varzim e Viana do Castelo, este último com a escavação de uma pequena necrópole no interior de um núcleo familiar. Existe um desconhecimento sobre as necrópoles do período. O Dr. Carlos Fabião supõe que os ritos funerários castrejos envolvessem a cremação, devido aos numerosos elementos que remetem ao mundo indo-europeu. As escavações arqueológicas mostram

"...fossas abertas no solo das habitações, forradas com pedras, no interior das quais se guardavam urnas contendo as cinzas do(s) defunto(s). Embora não seja possível atribuir uma datação precisa a estas fossas funerárias, é admissível que correspondam ao período de que tratamos" (FABIÃO, s/d: 196).

Com os atuais dados arqueológicos até o momento, face a inexistência de necrópoles espacialmente delimitadas, podemos especular que a maior parte do ritual funerário castrejo se dava no interior do espaço doméstico, provavelmente com o intuito de sacralizar a presença do antepassado, fortalecendo o núcleo familiar celular, base da sociedade castreja. "...o núcleo familiar parece emergir vigorosamente como célula-base da sociedade" (FABIÃO, s/d: 197). A permanência das cinzas enterradas em vasos na casa pode nos sugerir a sacralização do espaço cotidiano, dessa forma "protegido" magicamente contra as habituais invasões a que os castrejos estavam submetidos.

Existem divergências quanto à datação precisa do período que abrange a cultura castreja no noroeste da Península. Seu apogeu situa-se na II Idade do Ferro (post-halstático) entre os séculos III a.C. e I d.C. (SANTOS JÚNIOR, 1957: 29). A criação dos castros propriamente ditos deve corresponder aos movimentos migratórios da área indo-européia da meseta e das regiões meridionais, principalmente com as expedições de túrdulos e turdetanos, descendentes dos antigos tartéssicos, entre os séculos V e IV a. C.:

"Parece-nos que não é de excluir a hipótese de essa antiga divisão corresponder à remota divisão social registrada pelo mito fundador de Habis. Assim, os primeiros (túrdulos) poderiam pertencer à antiga plebe e os segundos (turdetanos) à velha aristocracia, ou vice-versa" (FABIÃO, s/d: 168).

Estas expedições teriam ocasionado uma instabilidade social em todo o território do Entre Douro e Minho, possibilitando o surgimento destas fortificações.

A cultura castreja sofreu influências externas distintas, a saber:
1) zonas meridionais ibero-púnicas (iniciada no Bronze Final);
2) migração dos túrdulos (refletidas nas técnicas, nos motivos cerâmicos e na ourivesaria);
3) influências continentais (com o crescente deslocamento das comunidades indo-européias) (FABIÃO, s/d: 192).

É difícil estabelecer com precisão a intensidade com que cada cultura externa influiu sobre a cultura castreja. De qualquer modo, foi essa cultura miscigenada que existia quando os romanos chegaram. A partir da conquista romana (que teve início em 205 a. C.) se deu progressivamente a romanização da cultura castreja, com a redistribuição e planificação urbanística dos castros sob a égide do invasor.

A ocupação cartaginesa no sul da Península (a partir de 237 a. C., com a invasão de Amílcar Barca - Hamilcar Barcha, m. 229-228 a.C.) e a II Guerra Púnica (218-201 a. C.), principalmente com as batalhas de Sagunto (219, início da guerra, com a vitória de Aníbal [Anibal ou Hannibal, 247-183 a.C.] no cerco à cidade), Becula (208) e Ilipa (207) (vitórias de Cipião Africano [Scipio Africanus, cônsul, 205 e 194 a.C.], com a conquista da Espanha para Roma) não influíram diretamente na cultura castreja de Entre Douro e Minho, mais ao norte da Península. Até 197 a.C., a dominação romana na Península se estendia numa faixa a oeste que ia de Emporion (no nordeste) a Gades (no sul). A conquista só terminou em 19 a.C., quando Agripa (Agrippa, m. 12 a.C.) dominou os últimos focos independentes asturianos. Será a partir de então que se dará a referida romanização da cultura castreja.

Um ótimo exemplo da influência romana é a escavação de Citânia de Safins, em Paços de Ferreira. Ela mostra um extenso povoado castrejo, com duas redes de muralhas à direita e uma divisão interna muralhada. A parte inferior da citânia mostra os típicos núcleos habitacionais circulares castrejos, reordenados em "bairros", em substituição ao "caos" anterior pré-romano. Na parte inferior, observamos quase 40 núcleos familiares circulares, e aproximadamente 15 núcleos quadrados. Estes últimos possivelmente foram construídos após a reordenação espacial romana, já que não fazem parte do habitat castrejo anterior (numa posição divergente, José Hermano Saraiva relaciona as casas de formato retangular à invasão céltica, e sua subseqüente miscigenação. SARAIVA, 1991: 21).

É importante ressaltar que, pelos dados fornecidos pelas escavações, cada casa castreja deveria reunir várias células familiares, ou uma família ampla, de 20 a 50 pessoas, constituindo uma "unidade suprafamiliar mais vasta" (FABIÃO, s/d: 197). Para o tema proposto, dispomos de mais informações de "índole arqueológica" (FABIÃO, s/d: 191) do que documental. No entanto, o geógrafo grego Estrabão (c. 64 a. C.- 25 d. C.), nos oferece um rico panorama dos povos peninsulares quando da conquista romana ("Strabo, nascido em Amasia, no Ponto [...] estudou em Roma por volta de 44-35 a. C. [...] Escreveu Memorandos sobre a História (Estudos Históricos), em 47 livros [...] deixou também 17 livros preservados sobre geografia" - BOWDER, s/d: 145).

Estrabão é um autor que deve ser utilizado com uma certa dose de prudência, principalmente quanto às suas apreciações de teor etnográfico. Sua obra reflete a visão do conquistador, com todo o seu desprezo pelas culturas bárbaras; a conquista romana é um imenso "esforço civilizador" (FABIÃO, s/d: 194) sobre as comunidades peninsulares.

Sua posição pró-romana já pode ser vista quando tenta explicar as origens da I Guerra Púnica (264 - 241 a. C.); Estrabão afirma que era prática usual dos cartagineses afogar qualquer marinheiro intruso, encontrado entre a Sardenha e Gibraltar. Pirataria que, mais tarde, "explicaria" moralmente a luta contra os púnicos (STRABO, Geography, XVII, 1, 19). Essa guerra ideológica seria imortalizada mais tarde com a frase de Catão, o Velho (Cato, 234 - 149 a. C.): Ceterum censeo delendam esse Carthaginem (E também penso que Cartago deve ser destruída).

Para ressaltar a importância da "chegada da civilização", Estrabão realça o barbarismo destes iberos pré-romanos, afirmando que muitos viviam em cavernas e choupanas, dormindo no chão e lavando os dentes com urina choca (STRABO, III, 4, 16). Podemos observar a distribuição dos povos que habitavam a Hispania pré-romana, de acordo com descrição de historiadores e geógrafos gregos e romanos (Atlas Histórico - edição especial para Encyclopedia Britannica do Brasil Publicações Ltda, MCMLXXXVI: 23). Mas não nos iludamos: esta é uma classificação étnica simples e que apresenta vários problemas. Estrabão e Plínio, o Velho (23/24-79 d. C.), por exemplo, muitas vezes tecem considerações genéricas sobre povos distintos ("...Plínio conseguiu achar tempo, nos intervalos de sua ativa carreira política, para escrever em escala prodigiosa: obras sobre tática de cavalaria [...] sobre a história das guerras contra a Germânia (20 livros), gramática, retórica, história contemporânea (31 volumes), todos perdidos. O que não aconteceu com a História Natural [37 volumes]" - BOWDER, s/d: 210).

A região que nos propomos discutir, a norte do rio Douro, zona 1, era o território de um grupo de etnias designadas genericamente pelo nome de calaicos (FABIÃO, s/d: 191) palavra relacionada com kelticoi, nome que os Romanos davam aos Celtas e que veio a dar o termo galegos SARAIVA, 1991: 22).

Nesta área litorânea castreja, já encontramos divergências entre Plínio, o Velho e Estrabão: o primeiro dá os nomes dos povos que ali viviam (bibalos, celernos, calaicos, equesos, límicos, querquenos, além de outros); o segundo afirma que os habitantes do norte do rio Douro eram lusitanos, e que somente após a conquista romana passaram a se chamar calaicos (FABIÃO, s/d: 191). Para um melhor entendimento, sempre que nos referirmos aos calaicos como o povo pertencente à cultura castreja, estaremos também nos referindo a outras etnias da mesma região e que desenvolveram uma cultura semelhante e o mesmo modo de habitação.

Os núcleos suprafamiliares castrejos possuíam provavelmente chefes, vitalícios ou nomeados provisoriamente. Na Citânia de Briteiros, em Guimarães, as escavações arqueológicas encontraram uma grande construção circular (11 m de diâmetro), com bancos corridos em volta, implantada num local mais afastado das habitações familiares (FABIÃO, s/d: 191). Já foram levantadas as seguintes hipóteses para a utilidade de tal monumento:

1) Um conselho de anciãos (sem se saber, no entanto, se existiam antes da conquista romana ou se foi uma implantação criada pelo poder estrangeiro);
2) Alguma instituição colegial ligada à administração de cada povoado e
3) Simplesmente reuniões de familiares, embora de maiores dimensões.

O Dr. Fabião afirma existir as mesmas dúvidas quanto ao título de princeps, que surgiu na época romana e parece designar uma função de chefia (FABIÃO, s/d: 191). Com a conquista romana, os povoados castrejos receberam a designação de castellum (com a abreviatura epigráfica da letra C invertida). A partir de então o habitante do castro desceu do cabeço e, num processo abrupto, se converteu num agricultor dominado, além de trabalhar para o Império Romano nas construções públicas (pavimentações, fortificações, vias, pontes, etc. - uma das mais perfeitas pontes romanas construídas no atual território português é a de Alcântara [a Norba Cesarina do período romano], com arcos de 100 pés de altura e 180 de largura). Como descreve Serrão:

"... após o assassínio do caudilho Viriato e a repressão brutal e sangrenta exercida pelas tropas de Júlio Bruto, irrompendo até a Galiza, o habitante dos castros, simultâneamente pastor e guerreiro, bisonho e bravio, foi, por fim, obrigado pela força das armas a descer à planície aberta e a submeter-se à disciplina e à lei do invasor, tendo de depor o escudo e a espada curta..." (SERRÃO, 1961-1971, vol. II: 535)

Viriato foi um chefe militar lusitano que infligiu sucessivas derrotas aos comandantes romanos, de 147 a 139 a.C. Os romanos firmaram um tratado com ele em 140 a.C. mas o repudiaram posteriomente, e Viriato foi assassinado em 138. Com sua morte, a resistência lusitana entrou em colapso." (BOWDER, s/d: 274).

Mesmo Estrabão, com todo seu discurso pró-romano, descreve a dura resistência que as populações castrejas ofereceram ao disciplinado exército romano. O geógrafo grego diz que as mulheres matavam os filhos para que não caíssem nas mãos romanas, e os prisioneiros morriam pregados na cruz cantando seus cantos de guerra (STRABO, IV, 16-18).

Mas deixemos a conquista romana de lado e voltemos a nos ocupar com a organização social castreja. Apesar das discussões referentes à existência de um conselho de anciãos ou alguma instituição colegial, não há dúvidas quanto à autonomia de cada povoado em relação aos outros. Os calaicos não possuíam nenhum tipo de instituição superior para sancionar atos ou leis de cada povoado. Um verdadeira fragmentação de poder, bem caracterizada nos votos religiosos encontrados, quando os calaicos identificavam sua origem "pelo nome do povoado que tinham nascido" ("ao contrário do que sucedia em outras regiões da área indo-européia peninsular" - FABIÃO, s/d: 1981).

Estrabão nos fala de festas familiares que os calaicos faziam em certas noites de lua cheia (STRABO, III, 4-6), provavelmente associadas a ritos religiosos. Conhecemos uma divindade, de nome Larouco, particularmente venerada na região de Vilar de Perdizes, em Vila Real. É também conhecida a rápida propagação do culto a Júpiter, e a associação sincrética do deus Marte a algumas divindades locais. A inexistência de santuários sugere um culto ao ar livre (FABIÃO, s/d: 198). Mas todas as construções específicas para um culto religioso foram construídas após a ocupação romana, o que não significa necessariamente que não possuíssem algum tipo de sacerdote, ou grupo sacerdotal.

Baseamo-nos ainda em Estrabão (a partir de agora citado por FABIÃO, s/d: 194-196). Este nos conta que as populações castrejas comiam pão de bolota durante a maior parte do ano. Suas atividades dominantes eram o pastoreio e a recoleção. As mulheres trabalhavam nos campos, os homens apascentavam o gado. Os calaicos ainda se envolviam em incursões de pilhagem nos territórios vizinhos. Tinham pouco vinho, o utilizando em festividades para fins de sociabilidade,

"...produziam, no entanto, uma bebida fermentada, à base de frutos. Desconheciam o azeite e usavam a manteiga como gordura alimentar e, provavelmente, para outros fins. Não é de excluir, também, a utilização do linho como oleaginosa alimentar" (citado por FABIÃO, s/d: 194-196).

Em contrapartida, a realidade descoberta pela arqueologia é bastante diferente. Aqui nos deparamos com uma situação em que há divergência entre o documento escrito e o material arqueológico. Com qual das duas opções o historiador deve optar?

Pensando de maneira coerente, o documento material não mente, é a prova cabal; o historiador da Antigüidade era movido pelos mesmos motivos ideológicos (visão de mundo, ambição, interesses políticos, etc.) de um historiador do século VI ou XIX. Afinal, somos todos humanos. O desejo de supervalorizar o "ímpeto civilizador" de Roma levou Estrabão a "ver" com olhos excessivamente pejorativos a cultura calaica castreja. "...recorde-se que o texto foi escrito enquanto decorriam as últimas campanhas de conquista dos povos Cântabros e Ástures - por isso (Estrabão) sublinha constantemente os caracteres que nelas considera mais ‘bárbaros" (FABIÃO, s/d: 194-196). O norte peninsular é também, segundo José Mattoso, o local de origem do regime senhorial português medieval (MATTOSO, 1985: 81-91).

Mas o que nos diz a Arqueologia? Investigações paleobotânicas feitas na Galiza (FABIÃO, s/d: 194) levam a crer que a agricultura de cereais e hortícolas continuava a ter um peso significativo na vida calaica. O que freiou o desenvolvimento da agricultura foi provavelmente a constante instabilidade social castreja, com os hábitos de saques e pilhagens. Mesmo assim, este período em questão viu surgir as primeiras mós manuais giratórias (FABIÃO, s/d: 195).

Segundo Estrabão, os calaicos utilizavam também o comércio marítimo: ele fala de "barcos revestidos de couro e com estrutura de madeira utilizados pelos povos setentrionais" (FABIÃO, s/d: 195). A arqueologia escavou jóias de ouro fabricadas localmente. Os recursos minerais (ouro e estanho) estimularam o interesse romano pela região (Roma já conhecia a riqueza mineral peninsular desde a dominação cartaginense no sudeste, principalmente entre a I e a II Guerras Púnicas. Com a vitória, os minérios hispânicos [ouro, prata, cobre, estanho, ferro, chumbo] passaram a enriquecer Roma, depois de haver enriquecido Tiro e Cartago).

A cerâmica pode se prestar a equívocos; foram encontrados vasos gregos (ânforas e outras de influência púnica) em vários castros (um deles Cividade do Terroso, em Póvoa do Varzim. Existe um desconhecimento quanto ao conteúdo destes vasos importados; talvez vinho ou azeite.

Quanto à cerâmica local, registra-se recipientes sinuosos, feitos geralmente com pastas grosseiras e com motivos geométricos feitos com incisão ou com matrizes de desenhos variados. Encontraram-se também os primeiro vasos com o auxílio do "torno lento" (fabricação manual) relacionada com o moinho manual giratório, uma aquisição tecnológica do período (FABIÃO, s/d: 196).

Estrabão se refere à utilização da madeira como uma forma de artesanato (STRABO, III, 3, 7). Aqui a arqueologia confirma a fonte documental: no castro de Santo Estêvão da Rocha, em Ponte de Lima, recolheram-se alguns fragmentos destes recipientes de madeira, apenas por circunstâncias excepcionais, pois a madeira é de difícil conservação num sítio, ao contrário da cerâmica ou qualquer tipo de metal.

Na metalurgia, os calaicos demonstraram grande especialização, principalmente com o bronze e o ouro. Utilizavam uma espada curta, com cabo de bronze (encontrada na Citânia de São Julião, em Vila Verde) e facas de lâmina curta, encontradas na Citânia de São Julião, no Castro de Santa Marta das Cortiças (Falperra, em Braga) e no Castro da Baiza (Avintes, em Gaia). Aqui também se confirma Estrabão, que afirma que os lusitanos ainda combatiam com lanças de bronze. Provavelmente só após a conquista romana a civilização do ferro introduziu-se na região. Divergindo do Dr. Carlos Fabião (cuja posição adotamos aqui), José Hermano Saraiva afirma que o ferro foi introduzido na região com a invasão celta, no I milênio a. C. (SARAIVA, 1991: 21).

Carvalhelhos é uma aldeia pertencente à freguesia de Beça, concelho de Boticas. Situa-se a 800 m de altitude, a 27 km de Chaves, para Sudoeste (todas as referências da escavação do castro de Carvalhelhos contidas aqui são de SANTOS JÚNIOR, 1957). Portanto, no distrito de Trás-os-Montes, região tipicamente castreja, como vimos anteriormente.

O castro foi "descoberto" pelo Sr. J. R. dos Santos Júnior em 1950, quando estava descendo a pé o caminho que vem de Lavradas para Carvalhelhos. Visível a olho nu, a muralha castreja estava quase toda derrubada (suas pedras foram utilizadas pela população local para a construção de casas), com seus fossos defensivos ainda evidentes. O Sr. Júnior constatou a existência de um ouriçado de pedras espetadas na terra, constituindo-se em mais uma linha de defesa (ao que parece, o reforço de pedras fincadas não é uma característica comum a todos os castros portugueses. Sua utilização parece demonstrar, além de uma maior preocupação defensiva, um desenvolvimento da arquitetura militar castreja). Isso dava ao castro de Carvalhelhos um interesse maior do ponto de vista arqueológico.

Nos anos seguintes (até 1957, data da publicação do trabalho aqui pesquisado) foram realizadas ao todo cinco escavações arqueológicas (1951, 1952, 1953, 1956 e 1957). Para não nos determos exaustivamente em cada uma delas, faremos um breve comentário acerca dos achados materiais no castro de Carvalhelhos. São os seguintes:

1) Fragmentos de cerâmica, basicamente 03 tipos: a} pouco espesso e de tonalidade escura (o mais abundante); b} pouco espesso e de tom claro, e c} textura granosa, face interna clara e externa escura;
2) Minério de ferro (03 pedaços) e um cristal de perite de ferro do tamanho da cabeça de um dedo;
3) Duas moedas: um vintém de D. Luís (encontrada na muralha) e outro vintém de D. Carlos (na casa retangular, que falaremos adiante).

O castro de Carvalhelhos é conhecido na região como crasto, ou couto dos mouros. Antes de seu tombamento - em Portugal, a classificação jurídica para patrimônios históricos chama-se "imóvel de interesse público". O castro de Carvalhelhos está enquadrado no decreto no. 38.941, de 06 de novembro de 1951 - o castro sofreu uma série de assaltos realizados pelas populações locais com o intuito de utilizar as pedras para construção de casas. Mesmo após o tombamento, o castro sofreu um assalto: "...um habitante de Carvalhelhos de nome Alexandre Alves se metera a fazer uma casa e que quatro carreiros ao serviço do mesmo, cada um com seu carro de bois, tinha ido ao castro buscar pedras e as tinham arrancado da muralha reconstruída e das casas redondas por nós descobertas..." (SANTOS JÚNIOR, 1957: 38). O indivíduo foi processado pela Fazenda Pública, mas não foi condenado a repor as pedras.

Com subsídios arrecadados por órgãos governamentais, as escavações puderam descobrir uma parte da muralha (50 m) na zona sul, além de três casas circulares e uma retangular.
Numa parte da muralha externa foi encontrada uma "porta", com 88 cm de largura, e uma segunda "porta" interna (chamada de porta principal), de 1,40 m de largura. Foram encontradas ainda vestígios de três muralhas - um habitante da região afirmou que existiam 7 muralhas no castro, antes das depravações. Todas essas "entrevistas" do Sr. J. R. dos Santos Júnior com velhos habitantes do local não serão aqui comentadas. Fazem parte de outro tipo de trabalho, mais ligado ao imaginário e à criação de mitos e lendas relativas ao castro em questão. Outra "porta" foi escavada (chamada pelos populares de cavalo dos mouros), do outro lado do riacho que lhe corre no sopé.

Um aspecto interessante deste castro foi a descoberta de pelo menos dez rampas de acesso à muralha. É um dado que afirma o desenvolvimento arquitetônico do castro. Como no trabalho do Sr. J. R. dos Santos Júnior não foram feitas datações, podemos supor que a construção castreja seja num período mais recente, ou até mesmo que tenha sido novamente utilizado pelas populações do alto medievo. Isso quase que antecipa as conhecidas pontes elevatórias dos castelos medievais. Demograficamente, também pode sugerir um crescimento populacional. São conjecturas possíveis, até termos uma datação mais precisa (como o trabalho aqui pesquisado é de 1957, existe a possibilidade do castro já ter sido datado pelos arqueólogos portugueses, e não ser do nosso conhecimento)

O castro de Carvalhelhos possui uma tríplice linha de fossos, com aberturas que variam de 4 até 12 metros (mas aqui podemos ter a ação da erosão). Com as pedras fincadas comentadas anteriormente (num total de cinco grupos - o maior grupo tem 18 a 20 m de comprimento por 3 a 4 m de largura, o menor, 3 m de comprimento por 2 de largura.), o castro de Carvalhelhos era muito bem defendido, tendo caído possivelmente por prolongado cerco (que trazia consequentemente a fome dos sitiados).

O castro situa-se numa zona granítica com xisto, rocha de textura laminar ou acicular, metamórfica, como a ardósia. A região do castro é rica de minério de estanho e de volvrâmio. Foi encontrado ainda um "esconderijo" (devidamente assaltado), próximo do cavalo dos mouros, que continha 200 kilos de cassiterite (a cassiterite é um valioso minério de estanho que, na Antigüidade, teve uma grande importância para a fabricação de objetos de bronze). Seria demais supor que as populações castrejas, obrigadas a trabalhar sob o jugo de Roma, tenham deliberadamente ocultado o minério para um posterior aproveitamento? É também provável que tenha despertado o interesse romano num cabeço próximo há vestígios de explorações mineiras. Isso também viabiliza a hipótese de queda do castro por cerco - a região de Trás-os-Montes foi uma das últimas a cair quando da conquista romana.

*
A continuidade da utilização do espaço social da Antigüidade à Idade Média é colocada por diversos autores, como Mumford,

"A pura e simples necessidade levou ao redescobrimento daquela antiga salvaguarda urbana, a muralha. Contra os ataques súbitos, uma muralha de guarda durante tôdas as horas, era mais útil que qualquer quantidade de coragem militar. A fôrça e a segurança de uma fortaleza empinada numa rocha íngreme podiam ser reproduzidas mesmo nas terras baixas" (MUMFORD, 1965: 327)

A necessidade de proteção contra ataques perpetrados por povos estrangeiros, ou mesmo vizinhos, trouxe de volta a cerca, a muralha, para o primeiro plano das preocupações das comunidades medievais. Posteriormente, em Portugal criou-se o "direito senhorial de fossadeira", que exigia dos homens livres (peões), a obrigação de escavar o fosso protetor dos acampamentos e de os defender, em substituição ao serviço militar efetivo (MATTOSO, s/d: 485). Isso para o período que compreende os séculos VIII-XI.

Essa preocupação possivelmente pode ter trazido os antigos castros de volta, quer pelas suas possibilidades de concentração numa área mais alta e, portanto, privilegiada para resistir a um cerco ou razia muçulmana, quer pela simples utilização e reaproveitamento de habitações abandonadas.

Temos vários indícios que apontam para uma reutilização social dos castros. Essa retomada do espaço castrejo já se dá no início da ocupação romana, quando novas áreas, mais baixas em relação ao antigo núcleo defensivo castrejo, começam a ser ocupadas, sob o domínio de Roma.

Em 332, a Espanha sofre uma redivisão política, passando a ter cinco províncias: Bética (capital Hispalis — Sevilha), Tarraconense (capital Tarragona), Lusitânia (capital Emerita Augusta, Mérida), Galiza (capital Astorga ou Bracara, Braga) e a Cartaginense (capital Cartagena). Havia ainda dois anexos: as Baleares (capital Palma) a Mauritânia Tingitana (capital Tingis, Tânger) (LOT, 1985: 251).

O período de paz "quase ininterrupta" foi quebrado em 409 com a chegada de alanos, suevos, vândalos asdingos e vândalos silingos. "Durante dois anos a Espanha foi posta a saque, principalmente a oeste, onde já não restavam quaisquer tropas romanas" (LOT, 1985: 251).

A luta pelo controle político levou ao extermínio dos vândalos silingos, além de uma série de revoltas sociais camponesas conhecidas como "bagaudas". Esse período de instabilidade social pode ter trazido momentaneamente, para as populações a norte do Douro, os antigos castros de volta, como locais seguros, de refúgios, um abrigo para os constantes ataques entre bárbaros (o tratado assinado com o Império em 411, que acantonou os invasores como federados, não amenizou a luta). Contudo, com a progressiva decadência do Império, a partir dos séculos III-IV, os castros sofrem um abandono generalizado,

"...ao estabelecimento nos pontos mais elevados do terreno, como lugares de habitação mais defensáveis, mas ásperos e ingratos à vida doméstica, se havia já preferido, com a consolidação da paz romana, a fixação nos vales e nas planuras agricultáveis. A uma norma de vida isolada e agressiva, de guerrilhas e assaltos, com uma economia baseada principalmente no pastoreio, sucedia-se, (...) a adaptação à vida pacífica do camponês, fecundando o húmus viçoso dos latifúndios, ainda virgens do sulco do arado" (SERRÃO, 1961-1971, vol. II: 533).

Embora o quadro oferecido por Serrão para os séculos seguintes à decadência do castro seja um tanto pueril, é de se notar a mudança espacial das populações castrejas, agora instaladas em espaços mais férteis para o plantio.

Como se dá então esse reaproveitamento medieval do castro? O mesmo Serrão nos oferece pistas: "Muitos desses núcleos castrejos (...) perduraram no decorrer de sua evolução (...) alguns deles mantiveram-se mesmo durante o domínio visigodo e a Alta Idade Média, dando origem a muitas das povoações actuais" (SERRÃO, 1961-1971, vol. II: 533).

Para o domínio suevo e visigótico, o melhor exemplo da necessidade de manutenção das muralhas se encontra na inscrição lapidar de Mérida. Ela comemora a reconstrução de sua ponte e cerca defensiva pelo dux Salla, que cumpria ordens do rei Eurico (rei visigodo, 466 - 484), no ano de 484 (MATTOSO, s/d: 324). Os constantes ataques de vândalos e suevos às cidades do sul da Península justificavam a preocupação visigoda. Além disso, o atrofiamento urbano generalizado na Europa a partir dos séculos III - IV também atingiu a Península. Muitas cidades ofreram esse abalo demográfico: Leão, Astorga, Lugo, Cáceres, Conímbriga, Lisboa, Idanha, Mérida, Évora, Mértola, Beja, Ossónoba. Contraditoriamente, a retração demográfica desse período parece corresponder ao abandono do castro. De qualquer modo, o fenômeno de construção (ou reaproveitamento) de muralhas pode ser um indício seguro de atrofiamento urbano, além da óbvia necessidade de defesa.

Tais incursões bárbaras forçaram as cidades a "concentrarem-se num simples recanto da sua antiga extensão": "A cidade do Baixo Império é um posto defensivo de uma superfície insignificante (10 a 20 hectares), que não comporta senão uma população extremamente reduzida, 3.000 ou 6.000 habitantes" (LOT, 1985: 323). Podemos aqui supor um movimento contínuo: a cada ataque, ou invasão, os antigos castros são utilizados, e, após o fim da incursão, as populações descerem o cabeço e voltarem às suas atividades normais.

Como vimos, a nova redivisão geopolítica na Península, com os grupos bárbaros disputando o espaço "abandonado" por Roma, pode suscitar a probabilidade do castro ser utilizado como ponto seguro para concentração de forças, incursões de surpresa ao campo inimigo, etc. Isso levando-se em conta o acidentado terreno ao norte do Douro, propício para o isolamento de diferentes culturas sob um mesmo sistema defensivo.

Essa região possui uma longa tradição de isolamento cultural e defesa contra "estrangeiros". É dela que a resistência se faz mais tenaz: da conquista romana à conquista muçulmana, ela é o último baluarte a cair. Ela é o foco inicial do processo de Reconquista; é dela que vemos surgir o movimento senhorial (para não falarmos de feudalismo peninsular, motivo de tanta controvérsia entre os historiadores) que se alastra para o sul, no rastro de Ourique, Alcácer do Sal e Las Navas de Tolosa. Nas palavras de Mattoso, é uma região de "reservatório de homens", "...área de povoamento mais precoce, região onde frequentemente reina a fome montanhesa, grande alimentadora das descidas, das constantes emigrações" (MATTOSO, 1985, vol. I: 31).

Mas é durante o período muçulmano que possuímos os melhores indícios de ocupação castreja. Aqui utilizamos a onomástica para relacionar a ocupação com longas tradições locais que perpetuam — muitas vezes sem o saber — essa lembrança.

O próprio caso do castro de Carvalhelhos, com seu cavalo dos mouros, não é um bom exemplo disso? A associação entre o antigo nome castro e suas posteriores designações saltam aos olhos: casal dos mouros, cerca dos mouros, feira dos mouros, toural dos mouros, couto dos mouros (SANTOS JÚNIOR, 1957: 28). Todos nomes para castro. Essa permanência da língua nos oferece a possibilidade de fazer tal conjectura. Mas não é só. Para esses séculos que se seguem, a "coincidência" onomástica não é menor. A partir do século IX, com as invasões normandas, todo o Ocidente medieval cobre-se de fortalezas. Os textos medievais dão os mais variados nomes: castellum, castrum, burgus, urbs (PIRENNE, 1962: 60). Pirenne enfatiza a associação burgo-instituição militar desde a sua origem. É para se ressaltar:

"Tais como nos surgem, os burgos são antes de tudo instituições militares. Mas a este caráter primitivo cedo se juntou o de centros de administração. O castelão deixou de ser simplesmente o comandante dos cavaleiros da guarnição castrense. O príncipe delega-lhe a autoridade financeira e judiciária (...) Em caso de guerra, os seus habitantes encontravam ali um refúgio (...) É uma população de fortaleza" (PIRENNE, 1962: 62-63).

As coincidências onomásticas permanecem, mesmo tratando-se de áreas distintas, separadas pelos Pireneus.

Dessa forma, não é de se estranhar que exista a possibilidade do uso do castro até para a construção de uma fortaleza, utilizando-se sua posição privilegiada, além do material granítico, já trabalhado em forma de bloco. Assim, podemos colocar a questão da longa permanência do castro como local de resistência, enraizado em sua geografia. Sem nos levarmos pelas antigas posturas nacionalistas ("Nos castros implantam-se velhas raízes da nacionalidade portuguesa. E assim, estudar os castros e a cultura castreja é fazer nacionalismo e do mais são" - SANTOS JÚNIOR, 1957: 29), o estudo do castro é o estudo de uma longa tradição de isolamento, de resistência cultural ibérica, onde os povos lusos (e aqui englobo o universo tribal peninsular) sempre se oporam ao que veio de fora, ao "outro".

Por fim, como também é um dos objetivos deste ensaio, devemos enfatizar a importância de uma maior interdisciplinaridade entre a Arqueologia e História, assunto já comentado aqui, mas nunca insuficiente. Nossa posição, de uma proximidade quase tênue, deve, sempre que possível, ser trabalhada futuramente em posteriores trabalhos acadêmicos. Como afirma Kern,

"...reafirmamos que a permanência de uma postura que teima em opor História e Arqueologia, tornou-se obsoleta e no mínimo vítima de um maniqueísmo simplista, que em nada colabora para a construção de um conhecimento mais objetivo da vida e da dinâmica social do Mundo Antigo" (KERN e DIAS, 1990: 128).

O que eu acrescento: do Mundo Medieval também.

Bibliografia

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