Durante
mais de 300 anos, a mesma Europa que viu nascer a Idade Moderna e
presenciou feitos como a conquista do Novo Mundo, a ascensão da
burguesia comercial e o fim do domínio feudal, fez das fogueiras um
instrumento de repressão e morte para milhares de mulheres condenadas
por bruxaria.
Por Cadu Ladeira e Beth Leite
As pilhas de lenhas e gravetos já estavam
acesas e a multidão inquieta, aguardava o início do ritual que conhecia
tão bem. Afinal, execuções eram espetáculos imperdíveis, que atraiam a
atenção de pessoas vindas de vários cantos. Em meio ao ruído abafado dos
comentários sobre os horrores que havia cometido, surgiu enfim a
condenada. A turba, que já estava agitada, aproveitou para liberar a
tensão reprimida: objetos, palavras de ódio, risos e piadas partiam de
todas as direções contra a terrível criatura. Não houve muitas delongas.
A sentença foi lida rapidamente, o carrasco, num gesto piedoso,
estrangulou a condenada para que não enfrentasse as chamas viva e, em
poucos minutos, seu corpo ardia, diante da aclamação selvagem da
assistência.
Durante mais de 300 anos, cenas como essa se
tornaram corriqueiras nas praças públicas de boa parte da Europa e o
caminho da fogueira se transformou no destino de milhares de mulheres.
Nuas, montadas em vassouras, aterrorizando cidades, aldeias e castelos,
no imaginário popular e religioso da época, as bruxas estavam por toda
parte, semeando o pavor. A perversidade feminina campeava solta, a
serviço dos mandos do demônio e precisava ser contida qualquer custo.
De 1450 a 1750, poucas pessoas ousariam
contradizer essa doutrina, repetida em tom de ameaça nos púlpitos dos
pregadores católicos, assim como nos sermões protestantes depois da
Reforma religiosa de Martinho Lutero no século XVI. Bruxaria era uma
calamidade tão real quanto tempestades ou pestes, e intimamente ligada à
natureza feminina. Com exceção de Portugal e Espanha, onde os
principais perseguidos eram cristãos novos e judeus, em quase toda a
Europa a porcentagem de mulheres excedeu 75% dos casos.
Em algumas localidades, como o condado de Namur (atual Bélgica), elas responderam por 90% das acusações.
Estima-se que 100 000 processos foram instalados pelo continente afora e pelo menos 60 000 vidas se perderam em meio às chamas.
Foi em plena Idade Moderna - a mesma que
presenciou a descoberta de um novo mundo com as grandes navegações, a
ascensão da burguesia comercial, o fim do domínio feudal e a formação
dos primeiros Estados nacionais europeus - que o temor às forças do mal
deixou o campo da crendice popular para se tornar alvo de uma
perseguição sistemática de tribunais leigos, religiosos e da Inquisição -
sob controle papal.
Não que as fogueiras tenham sido estranhas à
sociedade medieval. A Idade Média também presenciou exibições do poder
purificador das chamas, a mais notável delas, sem dúvida, aquela que
consumiu a vida da jovem Joana d'Arc em 30 de maio de 1431, na cidade de
Rouen, então sob domínio inglês. Heroína nacional, Joana ficou famosa
depois que conduziu o exército francês à vitória sobre os ingleses em
Orléans e deu início à revanche de seu país na Guerra dos Cem Anos
(1337-1453), até aquele momento vencida fragorosamente pelos britânicos.
Em 1430, quando caiu prisioneira nas mãos do duque de Borgonha, aliado
ao rei inglês Henrique V, seus inimigos aproveitaram a fama das visões
que ela costumava ter desde pequena para levá-la à fogueira, mesmo
sabendo de sua extrema devoção religiosa. Nesse caso, porém, o cunho
político da condenação era tão óbvio, que antes do final daquele século
ela seria reabilitada e em 1920 finalmente transformada em santa.
Para bruxas menos famosas, no entanto, a
chegada da Idade Moderna trouxe uma mudança radical na atitude da igreja
e dos tribunais em relação ao universo da superstição, do paganismo e
do mito com o qual, havia mais de 1500 anos, a Europa convivia. Na
mitologia romana, Diana, deusa dos bosques e dos animais, já costumava
guiar amazonas noturnas em cavalgadas celestes.
Entre as crenças
imemoriais germânicas, acreditava-se que figuras ameaçadoras, conhecidas
como streghe, se reuniam na floresta em torno de caldeirões para
realizar seus rituais. Depois se volatilizavam e invadiam as casas para
chupar a vitalidade das crianças. Mas em meio à insegurança da aurora da
modernidade, um tempo marcado por mudanças e desgraças constantes como
fomes, pestes, guerras e conflitos religiosos, boa parte dessa tradição
fantasiosa do passado acabou associada à certeza de que o demônio e suas
seguidoras estavam determinados a dominar o mundo.
Feitiços e mulheres
voadoras
tornaram-se, da noite para o dia parte te de uma grande conspiração
demoníaca. Encantos e ungüentos - chamados na época de maléfica - que
antes serviam para ajudar as pessoas se transformavam em passaporte
certo para a morte.
Não era preciso muito para provar que a ação
infernal estava em andamento. Além das tradicionais acusações de
possessões diabólicas, crises políticas e sociais, calamidades naturais
ou qualquer outro acontecimento anormal eram capazes de detonar a
mortandade. Em Trier, na França, uma feroz epidemia de processos contra
as bruxas ocorreu entre 1580 e 1599, quando duas grandes colheitas foram
dizimadas por alterações climáticas.
No principado alemão de Ellwagen,
em 1611, em Genebra em 1530,1545,1571 e 1615 e em Milão em 1630, para
citar uns poucos exemplos, centenas foram condenadas à morte após um
surto de peste. No século XVII, em Cambrai, também na Franca a
instalação de novas indústrias no campo gerou uma onda de ansiedade
entre os camponeses que logo desembocou numa grande caça.
Algumas alegações contra a bruxaria eram tão
descabidas, que só mesmo o clima de paranóia coletiva explicava a
relação: em 1590, depois que uma tormenta no Mar do Norte destruiu um
dos navios da comitiva de Jaime VI da Escócia e de sua noiva, Ana da
Dinamarca, os dois países iniciaram uma cruel perseguição a feiticeiras.
As grandes caçadas vinham assim: como tempestades de verão, chegavam
avassaladoras e de surpresa, mas tinham curta duração. Quase sempre,
após um período de frenética perseguição, as comunidades se aquietavam
durante os anos seguintes. Era como se tivessem se livrado de um cancro.
Escritos da época registram o quase
inacreditável. Na diocese italiana de Como, 1000 execuções em um ano. Em
Toulouse, na França, 400 cremações são contadas em um único dia. No
arcebispado francês de Trier, em 1585, 306 bruxas delataram cerca de
1500 cúmplices. Embora a maior parte das acusadas tenha escapado à
morte, isso não impediu que duas aldeias da região ficassem à beira do
extermínio: sobraram apenas duas mulheres em cada uma delas.O mais
impressionante é que a maior parte dessas mulheres, e mesmo dos homens,
condenadas chegaram às fogueiras por confissão própria, graças à
tortura.
Durante esses quase três séculos de morte, conseguir uma
confissão era apenas questão de tempo. Quando acontecia de o acusado
resistir muito durante uma sessão de maus tratos, isso só aumentava a
convicção de culpa dos interrogadores: afinal, tamanha resistência só
podia ter por trás o auxílio de forças que não eram apenas naturais.
Hoje, sabe-se que o uso indiscriminado desse
instrumento macabro se confunde com o próprio mapeamento da caça às
bruxas pela Europa.
O predomínio do temido Tribunal de
lnquisição, por exemplo, serviu para atenuar os casos de condenação à
morte de bruxas nos países da Península Ibérica e na Itália. Embora
tenha ficado famoso na Idade Média pela prática da tortura, na época em
que começou a grande repressão européia, a partir do século XV, os
inquisidores já haviam elaborado uma extensa reforma jurídica que
garantia não só assistência legal aos acusados como restringia a ação
dos torturados a casos muito especiais. Na Inglaterra, onde suspeitos de
bruxaria só podiam ser submetidos à tortura com autorização dos
conselhos superiores de Justiça, a caça às bruxas também teve pouca
expressão. Já na Alemanha, dividida em dezenas de ducados e principados
independentes política e judicialmente, a caça às bruxas ganhou
proporções assustadoras. Nada menos de 50% dos processos contra elas
aconteceram em terras germânicas, e a maior parte resultou em morte.
Às vezes, a descoberta de uma fraude
conseguia evitar que a perseguição chegasse a um final dramático. Em
1633, o jovem inglês Edmund Robinson denunciou uma mulher que o teria
levado a um sabá de bruxas, onde estavam reunidas cerca de sessenta
feiticeiras. O menino deu o nome de dezessete delas, todas imediatamente
presas e condenadas. Algumas dúvidas sobre o depoimento, no entanto,
levaram o bispo de Chester a interrogar Edmund e ele acabou admitindo
ter forjado a história por sugestão do pai, que havia indicado todos os
nomes "por inveja, vingança e desejo de tirar vantagem", descobriram os
juízes. Na Escócia, o ensaio de uma grande repressão nacional em 1661
entrou em colapso quando os eméritos caçadores de bruxas John Kincaid e
John Dick foram flagrados dando picadas em mulheres acusadas de
bruxaria: nos tribunais, essas pequenas marcas eram a prova de que elas
haviam feito pacto com o diabo.
Foram poucas, porém, as caças detidas por
evidência de fraudes. Normalmente, quando uma perseguição se instalava,
nada conseguia detê-la e o pânico tomava conta da população. A
princípio, todos estavam sob suspeita e a melhor defesa era o ataque.
Uma vez iniciada a caça, delações não paravam mais. Assustadas com a
perseguição, multas pessoas logo se punham a entregar as vizinhas na
tentativa de livrar a própria pele de potenciais acusações. Cada
possível bruxa levada a julgamento, por sua vez, não tardava a
incriminar mais uma lista de acusadas num efeito dominó que levava
grandes levas de pessoas diante dos juízes.
Cenas e relatos como esses não só foram
realidade como contavam com uma robusta fundamentação teórica de uma
obra sinistra. Publicado em 1486, o livro Malleus Maleficarum, escrito
pelos inquisidores papais alemães Heinrich Kramer e James Sprenger, foi
um eficaz instrumento nos tribunais para consolidar a crença de que uma
grande conspiração arquitetada por Satã e suas seguidoras, as bruxas,
tomava conta do mundo. Até o final do século XV, o manual já era um best
seller, recordista absoluto entre qualquer livro anterior ou posterior
sobre demonologia, com mais de uma dúzia de edições.
Na detalhada obra,
que explicava desde os feitiços mais comumente praticados até como
localizar a presença das malignas criaturas no seio da sociedade, Kramer
e Sprenger não pouparam esforços para mostrar que a mesma mulher que
provocou a expulsão do homem do paraíso ainda era uma ameaça presente. O
velho temor católico de monges e padres celibatários estava mais forte
do que nunca.
"A perfídia é mais encontrada nas pessoas do sexo frágil do que nos
homens" garantiam os dois. Bruxas eram o mal total: renunciavam ao
batismo, dedicavam seus corpos e almas ao demônio e, suprema lascívia,
costumavam manter relações sexuais com ele.
Principalmente durante os sabás, reuniões em
que as forças do mal se reuniam para banquetear-se com criancinhas não
batizadas e que sempre terminavam em fabulosas orgias. Testemunhos da
época davam notícia de sabás reunindo até 1000 bruxas.
Para provar a propensão natural da mulher à
maldade não faltavam argumentos aos autores do Malleus. A começar por
"uma falha na formação da primeira mulher, por ser ela criada a partir
de uma costela recurva, ou seja, uma costela no peito, cuja curvatura é,
por assim dizer contrária à retidão do homem. A própria etimologia da
palavra feminina confirmava essa fraqueza original: segundo eles,
femina, em latim, reunia em sua formação as palavras fide e minus, o que
quer dizer menos fé.
Defender idéias assim não era exclusividade
dos dois inquisidores alemães. A aversão à mulher como ser mais fraco e,
portanto, mais propenso a sucumbir à tentação diabólica era moeda
corrente em todas as regiões da Europa - dos pequenos vilarejos
camponeses aos grandes centros urbanos. Nos sermões de padres por toda a
Europa, proliferava a concepção de que a bruxaria estava ligada à
cobiça carnal insaciável do "sexo frágil", que não conhece limites para
satisfazer seus prazeres. Com seu "furor uterino", para o homem a mulher
era uma armadilha fatal, que podia levá-lo à destruição, impedindo-o de
seguir sua vida tranqüilamente e de estar em paz com sua
espiritualidade.
O clima de desconfiança em relação às
mulheres teve também predileções profissionais. Quando não era o caso de
grandes perseguições orquestradas para expurgar males como a peste,
certos ofícios tipicamente femininos tinham precedência na lista de
denúncias. Curandeiras, vitais para uma sociedade onde a medicina ainda
era uma ciência incipiente, tornavam-se herejes e apóstatas da noite
para o dia. Cozinheiras também viviam sob constante desconfiança, assim
como as parteiras. Acusadas freqüentemente de batizar os recém-nascidos
em nome do diabo ou de matá-los para usar seus corpos em rituais, elas
foram vítimas de anos de suspeita acumulada, numa época em que a taxa de
mortalidade infantil era altíssima.
Em 1587, a parteira alemã Walpurga
Hausmannin, foi processada por ter causado a morte de quarenta crianças,
algumas com até 12 anos. Entre os métodos que ela empregava, estavam o
estrangulamento, esmagamento de cérebro da criança no parto e aplicação
de "um ungüento do diabo sobre a placenta", de modo que a mãe e a
criança morressem juntas. Seu destino foi a fogueira. O mesmo de uma
parteira húngara, que em 1728 conseguiu uma marca duvidosa, mas
perfeitamente factível para seus contemporâneos: ela morreu queimada por
ter batizado nada menos do que 2000 crianças em nome do demônio.
Para quem se acostumou a relacionar a figura
das bruxas a personagens pitorescas de contos da carochinha - como a
madrasta de Branca de Neve ou a fada malvada de Cinderela -, às vezes
fica difícil acreditar em histórias assim. Mas elas existiram e deixaram
em seu rastro uma cruel realidade da morte de milhares de mulheres
inocentes em fogueiras piamente acesas para limpar o mundo.
A
identidade com o pecado original, principalmente na história do
cristianismo, foi um fardo pesado para a mulher até o século XVII.
Desde os primeiros eremitas cristãos, nos
desertos da Síria é do Egito, a busca da austeridade religiosa pelo
isolamento ascético tornou-se não só uma regra obrigatória para o
aprimoramento espiritual, mas também consagrou o papel da mulher como a
principal tentação mundana, capaz de afastar o homem do caminho da
purificação. Uma norma que, na Europa, começaria a se consagrar a partir
do século VI, quando São Bento de Nursia fundou o mosteiro de Monte
Cassino, na Itália, e deu início ao movimento monástico beneditino, que
marcaria profundamente a atitude religiosa do continente.
"Toda malícia é leve, comparada com a
malícia de uma mulher." (Eclesiástico 25:26)
"Tu deverias usar sempre o
luto, estar coberta de andrajos e mergulhada na penitência, a fim de
compensar a culpa de ter trazido a perdição ao gênero humano... Mulher,
tu és a porta do Diabo." (Quinto Tertuliano, escritor cristão, século
III)
"Dentre as incontáveis armadilhas que o nosso inimigo ardiloso armou
através de todas as colinas e planícies do mundo, a pior é aquela que
quase ninguém pode evitar: é a mulher, funesta cepa de desgraça, muda de
todos os vícios, que engendrou no mundo inteiro os mais numerosos
escândalos." (Marborde, monge de Angers, século Xl)
"Toda mulher se
regozija de pensar no pecado e de vivê-lo. "(Bernard de Morlas, monge da Abadia de
Cluny, século XII)
"A mulher é um verdadeiro diabo, uma inimiga da paz
uma fonte de impaciência, uma ocasião de disputa das quais o homem deve
manter-se afastado se quer gozar a tranqüilidade" (Francisco Petrarca,
poeta italiano, século XIV)
"Que se leiam os livros de todos aqueles que
escreveram sobre feiticeiros e encontrar-se-ão cinqüenta mulheres
feiticeiras, ou então demoníacas, para um homem." (Jean Bodin, jurista,
sociólogo e historiador, século XVI)
"Pois a Natureza pretende fazer
sempre sua obra perfeita e acabada: mas se a matéria não é própria para
isso, ela faz o mais próximo do perfeito que pode. Então, se a matéria
para isso não é bastante própria e conveniente para formar o filho, faz
com ela uma fêmea, que é um macho mutilado e imperfeito." (Laurent
Joubert, conselheiro e médico inglês, século XVII).
FONTE: Contando História - http://www.amazon.com.br/~armando
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