domingo, 2 de dezembro de 2012

A Deusa-Mãe

DEUSES E SANTOS

Misto de amor e ódio, ela é a mais antiga das divindades: a terra que dá a vida e também a morte.


A DEUSA-MÃE

A deusa-mãe é uma entidade em que os opostos se combinam: amor humano é uma das suas áreas de influência, mas também é o impulso que leva os homens a guerra. Doadora da vida, ela também é a divindade que a toma. Desde os tempos imemoriais o homem tem refletido com espanto, maravilhado, sobre a terra em que vive, que alimenta seus animais, sua família e sua tribo. E porque se sente dependente da terra, ela a personifica e a adora, ou pelo menos, a reverencia na mais poderosa de todas as imagens, a imagem da mãe.

Há não muito tempo atrás, uma sugestão foi feita: se alguém escrevesse um livro chamado Deus é Mulher, seria por certo, um Best seller. A sugestão pode ter sido parcialmente frívola, mas tendo em mente que, na história da humanidade só recentemente é que a divindade adquiriu atributos exclusivamente masculinos, a possibilidade de emprestar força sobrenatural em termos femininos está longe de ser irracional.

A mãe e o pai divinos

No ocidente, Deus é geralmente referido como “Nosso Pai que está no céu” mas a ingênua pergunta “Se Deus é o Pai, quem é nossa Mãe?” ainda merece ser respondida.

Historicamente a resposta é esta: “A Terra em que vivemos”.

Hoje em dia na sociedade ocidental, onde em grande parte as crenças das sociedades agrícolas já perderam suas raízes, diz-se que a terra deixou de ser santificada. A reverencia cedeu lugar a rude exploração. O mistério sumiu, para ser substituído pelos tapetes de asfalto e concreto e pela agricultura mecanizada.

A história da religião revela um panorama de deuses e deusas, seres espirituais, mais ou menos importantes, entre os quais a personificação da Terra ocupa uma posição proeminente. Como regra geral essa personificação ostenta os atributos da sexualidade e maternidade femininas. Em certos casos, é paradoxalmente apresentada como virgem. Muitas vezes – também paradoxalmente – combina qualidades de generosidade e graça, e também de horror e destruição. Se o amor humano é uma das áreas de sua influencia, o insensato impulso que leva o home a luta também o é.

As imagens que a representam podem ser da natureza da Vênus de Milo, forma ideal da beleza feminina. Ou podem representar distorções de formas e vestes monstruosas. A deusa-mãe, na história da humanidade, não é – e isso está claro – nenhuma forma de figura romântica, mas, ao contrário, alguém em quem os opostos combinam; a doadora da vida é claramente vista também como o ser que pode destruí-la. O paradoxo parece ter sido quase universal.

Um culto universal

Da Escandinávia a Melanésia, deusas, nas quais exatamente esses dois atributos eram encontrados, foram adoradas, temidas e obsequiadas. A universalidade desse fenômeno levou alguns estudiosos a afirmar que o que presenciamos é o reflexo de um fato psicológico que é sempre o mesmo em todos os lugares, embora revestido de forma levemente diferente, nos símbolos.

Mas essa interpretação psicológica também apresenta seus riscos. As vênus paleolíticas, por exemplo, não podem ser facilmente comparáveis a figura medieval da Virgem Maria. A figura da deus-mãe, na Índia, não é a mesma da Grande Mãe das áreas mediterrâneas. A interpretação de Freud e Jung não pode merecer maior crédito do que uma hipótese interessante. 

Entre os mais antigos artefatos do último período paleolítico, existem grotescas figuras de mulheres grávidas, com as ancas e os seios desmesuradamente acentuados. Mas, não há qualquer possibilidade de se afirmar que representam figuras de deusas – isso é só uma hipótese.

A deusa-mãe, na Índia, é uma divindade de muitos aspectos: Parvati, consorte de Siva, Bhaivari, “a terrível”, ou Ambika, “fonte de toda a vida”


Mesmo hoje em dia, o visitante que chegar a uma vila na Índia, pode se surpreender, ao descobrir que os templos dos grandes deuses Siva e Vishnu, são tidos pelo povo como de menor importância que o pequeno santuário da deusa local, ou Grami Devi. Ela pode ter muitos nomes, alguns dos quais encontrados nos textos normais do hinduísmo. Mas ela “é da terra” diretamente responsável pelos campos que circundam a povoação. Pode ser mitologicamente ligada aos consortes dos grandes deuses, Parvati, consorte de Siva, Kali, sua esposa, ou Lakshimi, que fora esposa de Vishnu – mas em todas as circunstâncias, ela é a guardiã da vila, a quem os habitantes se voltam para a solução dos problemas diários. Ela tem seus festivais e suas responsabilidades específicas e é provável que suas funções não tenham mudado de natureza por mais de 5 mil anos.

Na região mediterrânea, que vai desde o Irã, no Leste, até Roma, no Oeste, incluindo Mesopotâmia, Egito e Grécia, o culto a deusa-mãe é tão interligado, que torna qualquer estudo comparativo quase impossível. A identificação da deusa-mãe com a terra fértil é inquestionável: mas, a começar da Mesopotâmia, sua personalidade é tão complicada como a própria humanidade. Por isso ela continua misteriosa, desafiando a inteligência de inúmeros estudiosos.


Inanna, Ishtar, Astarte e Vênus

A figura feminina com atributos de divindade, contudo, é certamente mais do que simples amuleto, para dar sorte. O nome semita para a mais importante deusa-mãe era Inanna, na Suméria, Ishtar, na Babilônia, Astarte, ou Anat, entre os povos de Canaã. Comumente identificada ao planeta Vênus, seu atributo mais típico é o de “rainha do céu” embora seja conhecida também como “namorada dos deuses” e “rainha do mundo”. 

Com o tempo, adquiriu os atributos de outra deusas, de tal forma que, na Mesopotâmia, a palavra “Ishtar” terminou significando simplesmente “deusa”. Acreditava-se que era ela quem produzia a vegetação. Um hino dizia: “Nos céus, eu tomo meu lugar e mando as chuvas; na terra, eu tomo meu lugar e causo a germinação das sementes verdes”. Era a deusa do amor sexual, do casamento e da maternidade. Outro hino dizia: “Transformo homens em mulheres, mulheres em homens; eu sou quem adorna os homens para as mulheres, eu sou quem adorna as mulhres para os homens”. Seu culto era freqüentemente associado a prostituição sagrada.


A sagrada prostituição

O culto da deusa-mãe caminhou para o ocidente através de Chipre e Creta, para a Anatólia e a Grécia. Em sua forma grega pura, o culto a Afrodite na Grécia era cercado de decoro, mas nas fronteiras, em Corinto, era praticada a prostituição sagrada. Mas, quando entrou em contato com a cultura grega, o culto da deusa-mãe encontrou similar proveniente de culturas indo-européias.

No Irã, era adorada Anahita, a deusa que “purifica as sementes do homem e as entranhas e o leite das mulheres”. Era descrita como “uma virgem maravilhosa, poderosa e alta”. Seu culto espalhou-se pelo império persa, e multiplicou-se sob várias formas: Atenas, Afrodite e Cibele, de Anatólia.

Foi Cibele quem, finalmente, se viu adorada no Império romano, como a mãe dos deuses, tendo um templo em seu louvor erguido na colina Palatino, em Roma, no ano 204 a.e.c.

O culto a Cibele continuou, mesmo depois que os romanos o adotaram, de responsabilidade dos primitivos frigias, que usavam cabelos longos e roupas femininas e que nas comemorações a Cibele, realizavam danças orgiásticas que incluíam a auto-estimulação.


Isis egípcia, mãe do faraó

Outra forma popular de adoração a deusa-mãe ainda no Império romano, era o culto de Ísis, a deusa egípcia. Esposa de Osíris, ela era mãe do faraó Hórus. Uma das representações de Ísis a mostrava cuidando do filho, que alguns acreditam ter sido a cena inspiradora das posteriores imagens cristãs de mãe e filho.

Na Anatólia, adorava-se a deusa Ma, cujos sacerdotes eram conhecidos como fanatici (o que quer dizer servos do fanum, ou templo), de onde vem o termo “fanático”.

Mais ao norte havia as deusas tribais celtas e teutônicas. Dentre as últimas, dizia-se que a deusa Freya tivera relações sexuais com todos os membros do panteão e que, como deusa dos mortos, compartilhava com Odin a custódia dos guerreiros tombados em combate. Esta é a mesma forma de ambivalência observada em muitas figuras da deusa-mãe: porque a terra recebe os mortos e possibilita a germinação de homens e animais, as deusas-mãe são também divindades do reino dos mortos.

Representada em estatuetas índias primitivas de deusa da fertilidade, em atitude de quem espera sacrifício, transformada com o tempo: a virgem Maria encarna muitos atributos da “grande mãe” do Mediterrâneo; as estatuetas mostram que a figura feminina com seios desenvolvidos e quadris enormes, foi sempre e em todo o mundo uma preocupação dos homens de locais tão diversos quanto Assíria, Anatólia (6000 a.e.c) e Brasil.


Com o advento do cristianismo nos países do mediterrâneo e Europa, o efeito imediato foi o da perda de prestígio desses cultos e as antigas divindades foram transformadas em demônios. No caso da grande mãe, no entanto, a crença popular transferiu muitos de seus atributos à Virgem Maria. Da mesma forma, divindades locais acabaram sendo confundidas com alguns santos cristãos.

Em Belém, por exemplo, há, ou havia, uma caverna conhecida como “ a gruta do leite”. A lenda diz que a sagrada família uma vez se refugiou ali e que, enquanto a virgem Maria amamentava Jesus, uma gota de seu leite caiu no solo. Por isso acreditava-se que entrar na caverna curava a esterilidade feminina, ou aumentava o leite das mães – humanas ou animais. É claro que ali era um local de adoração de uma forma qualquer de deusa local: a lenda seria apenas uma cristianização de um culto anterior.

A figura divina para a humanidade

A adoração e a reverencia da humanidade pela divina figura da mãe, é um fenômeno religioso muito mais profundo que dogmas, conselhos ou credos. Reflete a constante necessidade da criatura humana de segurança, num mundo inteiramente adverso. Reflete ainda a falta de adequação e os temores do homem. É a pressão entre os dois extremos – o bem e o mal – entre a dádiva da vida e o medo da morte, personificados na deusa que dá e tira, que cria e destrói, mas que nunca é indiferente, como seus consortes, os deuses do céu.

Enquanto o homem mantiver suas raízes na terra, a reverencia continuará sempre, porque a deusa-mãe é quem o defenderá nas esferas mais altas do concerto divino, porque o entende e lhe dá calor, recebe seu afeto e sabe suas falhas, compreende suas necessidades e tem ternura por sua pequenez. Numa expressão simples, a intimidade é completa, porque a deusa-mãe é a intermediária direta da criatura humana com os deuses dos céus: ela sempre terá filhos humanos.

Retirado da revista: Homem, Mito e Magia. Vol. I nº VI Pág. 120 a 123. Editora 3. São Paulo. 1973



Continuar lendo ››

sábado, 1 de dezembro de 2012

Ancestral Local


O artigo a seguir é uma pertinente reflexão sobre o paganismo brasileiro de autoria do amigo Hugo Cezar F. Gondim, o Druida do vento, autor do fantástico blog druidadovento.blogspot.com.br, foi publicado com autorização.

“Pagão Brasileiro” gosta de índio europeu ou estrangeiro. É perceptível a parafernália norte-americana, o calendário Maia que é Asteca, os negócios da China, as brumas de Avalon, a entoação de Mantras e o sal do Mediterrâneo. Eu ainda estou me esforçando para encontrar os deuses ancestrais do Brasil, que desapareceram do repertório de estudos do tal “Pagão Brasileiro”. É notável a falta de sentimento pela Terra que está sob nossos pés neste país, atingindo pagãos, cristãos e sei lá quem. Nós nunca olhamos para o chão, sempre estamos a procura de outro lugar. Li uma frase esses dias que me intrigou: “Se não fosse Pedro Alvares Cabral, eu estaria na Europa”. Quem disse que Pedro Alvares Cabral tem algo com sua encarnação atual? 
Quando as espiritualidades pagãs no Brasil exploram deidades indígenas, elas são quase sempre Incaicas, Maias, Astecas, Norte-Americanas e Canadenses. A figura do Xamã para um “pagão brasileiro” é um velho índio Hopi ou Cree, ou ainda um Siberiano. Pajelança não é paganismo, segundo o “pagão brasileiro”, porque a Umbanda usufrui. Muito além disso, criou-se a consciência que o pajé morreu, inexistente na atualidade, são “benzedeiros”. Cultura indígena é coisa de historiadores e antropólogos, que devem congelar seus mitos em livros. Pensamento dos nossos avós de que “índio bom é índio morto”. 

Se o Pajé com elementos cristãos também não é mais “pagão”, Neo-xamã e xamã urbano são o que então? Mas o Pajé é um pobre coitado que aceitou ser subjugado pela cultura do branco. Não, mas espere um instante! Essa fala é do colonizador, não do nativo. Os povos que aqui viveram nunca foram submissos, eles lutaram e ainda lutam. Quem deu o veredito que eles “aceitaram de bom grado” foram os senhores, filhos de Pedro Alvares Cabral. Houveram grandes e duradouras resistências, como a Mbya-Guaikuru. As mães reclamaram quando jesuítas e colonos tiraram seus filhos de seus braços para o trabalho. Pajé viu tudo, mas brasileiro, parece não ver nada.

Não me venha com essa que você, brasileiro, não tem descendência indígena! Nós todos somos um povo miscigenado, colorido e muito belo. Nós todos temos “um pé na casa grande, na senzala e na aldeia”. Todos esses são nossos ancestrais, seja nossa história sofrida ou não. Já assistiu o filme brasileiro “Desmundo”? Ele conta o período da colonização, com certos detalhes, e demonstra como surgiu a sociedade brasileira: um povo multiétnico.
 
 A justificativa de ter ou não descendência indígena não é o sufiente também, pois a maioria das tradições pagãs prezam a ancestralidade local. Explicando: Ancestralidade Local é o respeito pelos espíritos ancestrais daquele lugar ou região, com gostos, rostos e origens diferentes. No druidismo há três ancestralidades principais: sanguínea, espiritual e local. Ou seja, deve haver respeito e honra para todos os aspectos. Observo muitos rituais “pagãos brasileiros” que fazem sua abertura sem ao menos dizer “Olá, posso entrar?”. Você gostaria que alguém entrasse na sua casa sem avisar? Ou melhor, se você fosse um espírito, que viveu numa dada região e sofreu com a invasão de outros povos, que destruíram sua estrutura cultural, gostaria de ter novamente a mesma experiência no plano espiritual? É momento de exercer respeito com os povos nativos (e isso não é novidade).

Eu gosto de ver “pagão brasileiro” engajado em lutas pela defesa do indígena brasileiro. Acho lindo quando vejo em um ritual oferendas e palavras poéticas aos ancestrais da Terra. Creio ser muito válido chamar meus avós indígenas e curandeiros ancestrais para abençoar os meus passos. Amo as lendas nativas e sua sabedoria e gosto de pesquisar sobre. Se somente esperarmos que historiadores e antropólogos façam catálogos da cultura indígena, ela morrerá. É necessária a prática.


Após ler um livro sobre xamanismo, tenha certeza, você não se tornou um xamã. Lembre-se que na prática que se vê o xamã. Leia, informe-se, saiba sobre a cultura local. Vá a uma Aldeia, desmistifique a sua visão do “índio de livro didático”. Se puder e o xamã tiver essa permissão, deixe-se treinar por ele. Pode ser pouco o que ele tem a oferecer, mas é tudo, é sutil. Um xamã não diz toda a sua sabedoria, pois acredita que ela se desenvolve aos poucos no jovem aprendiz.

Não deseja estudar xamanismo? Você tem toda a liberdade, mas está preso ao respeito pela ancestralidade local. Ame e pratique de corpo e alma com sua parafernália norte-americana, calendário Maia que é Asteca, negócio da China, brumas de Avalon, entoação de Mantras e sal do Mediterrâneo. Entretanto, por favor, faça uma pequena pausa e diga antes de fazer o ritual: “Olá, tenho a permissão?”. Se o problema é não saber o nome, não há problema. Eles, os espíritos ancestrais da Terra, só querem ser reconhecidos por nós. Um simples gesto é uma oferta de coração. Vá aprimorando isso. 


Continuar lendo ››

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O poder dos Yukin e do Xaman

Do blog da Sí-Raven 
 
O poder dos yuxin, que se revela por sua capacidade de transformação, é chamado muka. 

Muka é uma qualidade xamânica, às vezes concretizada como substância. O ser com muka tem o poder espiritual de matar e curar sem usar força física ou veneno (remédio: dau). O ser humano pode receber muka dos yuxin, o que lhe abre o caminho para se tornar xamã, pajé, mukaya. 

Mukaya significa homem com muka, ou na tradução de Deshayes “pris par l’amer” (‘pego pelo amargo’). O xamã tem um papel ativo no processo de acumulação de poder e conhecimento espiritual, mas sua iniciação acontecerá somente a partir da iniciativa dos yuxin. Se os yuxin não o escolhem, não o pegam, pouco adiantam seus passeios solitários na mata. Uma vez pego porém, o aprendiz torna-se doente aos olhos dos humanos (“ficam doidos quando chega mulher perto”). 

O ponto fraco do yuxin é o corpo, o do homem é seu yuxin; a “yuxindade” ameaça o corpo do homem, e o corpo, o sangue (feminino) ameaça a cabeça dos yuxin. Se o homem que foi pego quiser seguir o caminho de mukaya, ele se submete a jejuns prolongados e severos (sama) e procura outro mukaya para instruí-lo.

Outra característica do xamanismo kaxinawá, expressa pelo nome mukaya, está na oposição entre o amargo (muka) e o doce (bata). Os kaxinawá distinguem dois tipos de remédio (dau): os remédios doces (dau bata) são folhas da mata, certas secreções e animais e os adornos corporais; os remédios amargos (dau muka) são os poderes invisíveis dos espíritos e do mukaya.
 
A especialidade de huni dauya (homem com remédio doce, ervatário) normalmente não se combina com a de huni mukaya (xamã). O processo de aprendizagem do ervatário é bem diferente do xamã. Se não lidar com folhas venenosas o ervatário não é sujeito a jejuns e pode desenvolver suas atividades normais de caça e vida conjugal. Ele adquire seu conhecimento através da aprendizagem com o outro especialista e precisa de uma memória e percepção agudas.

O primeiro sinal de que alguém possui a potência para ser um xamã, uma desenvolvida relação com o mundo dos yuxin, é o fracasso na caça. O xamã desenvolve uma familiaridade tão grande com o universo animal (ou com os yuxin dos animais), conseguindo estabelecer diálogo com eles, que não consegue mais matá-los: “e anda no mato, bicho está falando comigo, disse. Quando vê o veado, aí chama ‘hei meu cunhado’, disse, aí ficava parado. Quando vem porco, ‘ah’, chamava, ‘ah, meu tio’, aí fica. Aí em nossa palavra disse ‘em txai huaí!’(‘Hei, cunhado!’), aí não come”.

Sendo assim, o xamã não come carne, e não somente por motivos emocionais. A impossibilidade de comer carne também está ligada ao muka, à mudança no olfato e no paladar da pessoa com muka amadurecido no seu coração. O gosto e o cheiro da carne tornam-se amargos.


Elsje Maria Lagrou
Antropóloga, professora da UFRJ
Continuar lendo ››

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Definindo Bruxos

O texto a seguir é a melhor definição de Bruxos que já li, é de autoria da amiga AnkhNuit a quem respeito imensamente, e foi aqui publicado sob autorização. Aproveitem, este artigo ensina muito.

É Beltaine. A Luz, o Calor e "os Fogos" de Bel fazem-se sentir por toda a parte num ressurgir gradativo de vida que se manifesta nos mais diversos níveis. É o tempo da Luz que promove a eclosão de idéias novas e claras até então armazenados nos silos herméticos dos nossos corações.

É o tempo do Fogo que faz brotar labaredas de compreensão na alma.

É o tempo de expôr os porquês das nossas experiências.  

É o tempo de verbalizar o que aprendemos com Morrigan na "dor" do Samhain escuro e frio que nos fere de morte para que aprendamos a valorizar a vida; dor que só compreendemos na pureza do amor de Briga, a "Exaltada" e "Luminosa", que é a sabedoria que inspira e promove a cura das nossas feridas espirituais no Imbolc - o tempo de cumprir a promessa do alimento divino que trará novamente o alento de vida, a força e a luz que promovem o manifestar da centelha sagrada. E eis que chega Beltaine para que a sagrada centelha possa então ressuscitar agora mais convicta e invicta. Essas são reflexões de experiências palpáveis, vívidas e vivenciadas em cada roda que se completa em Lughnasadh.

Experiências que estão marcadas com o fogo sagrado da Forja dos Deuses no nosso coração. E que temos sobre nossa vulnerabilidade e falibilidade porém quanto maior o número de rodas vivenciadas mais certeza e é justamente essa certeza que nos dá força, coragem, fé e determinação impelindo-nos para uma batalha diária, incansável e incessante, pela busca do conhecimento que nos fará vislumbrar os mais tênues e quase imperceptíveis alvores daquilo que é a Sabedoria, uma qualidade que muitos almejam mas pouquíssimos já alcançaram. Diante de tais constatações, como peregrina convicta e ardentemente empenhada na minha busca interminável pergunto-me:

Quais requisitos devem ser considerados por quem se propõe a seguir o caminho da Bruxaria?
O que é, ou quem é um bruxo?
E então exponho o tão pouco ou quase nada que aprendi nestes anos de Caminho:

- Um Bruxo sabe que cada dia é um novo dia e, por mais rotineiro que sejam os seus afazeres, nada do que ele faz hoje é igual ao que ele fêz ontem;

- Um Bruxo é consciente de que nasceu para empenhar-se em algo que não vai transformá-lo numa estrela hollywoodiana, mas que esse algo por menor que possa parecer, é bastante grande dentro do contexto da Teia Cósmica;

- Um Bruxo sabe que não é, nunca foi e nunca será mal-amado porque está sempre conectado com a espiritualidade a quem ele ama e por quem é amado, não têm razão alguma para se revoltar com nada (por acaso um BRUXO não tem consciência que por detrás de cada "paulada que toma no meio da cara" existe uma lição a ser aprendida?), desconhece a necessidade de ser mimado porque não se permite ser manipulado, que as ditas "fases ruins" são os testes tão necessários à sua evolução e que não existe ninguém mentalmente perfeito;

- Um Bruxo sabe que a Solidão é a sua maior e melhor Conselheira (porque ele tem consciência de que quando está só de pessoas materiais ele pode se comunicar com as pedras, as árvores, os pássaros, os animais, com os elementos, com seus mentores, seus ancestrais e até consigo mesmo;

 - Um Bruxo sabe que pai e mãe não são eternos, que filhos crescem e vão viver suas vidas e que os amigos têm os seus problemas particulares para resolver como qualquer outro mortal inclusive como ele mesmo;

- Um Bruxo sabe que não precisa dar satisfações dos seus atos à ninguém porque todos colhem exatamente o que plantam e isso nem os deuses podem mudar;

- Um Bruxo está se "lixando" se alguém vai chorar a sua morte simplesmente porque um Bruxo não acredita na Morte e, sempre que pode, ensina para aqueles que ele ama que a morte é uma ilusão pois somos seres eternos;

- Um Bruxo não tem último desejo e nem quer que os que o amam de verdade sintam saudade da sua presença depois da sua morte;

- Um Bruxo não busca PODER. Busca SABEDORIA. Porque um BRUXO sabe que com Sabedoria ele consegue tudo o que PRECISA.

- Um bruxo sabe que nunca terá o que QUER mas sim o que realmente NECESSITA. 

- Um Bruxo sabe que ele jamais vai encontrar o que procura mas sim o que precisa realmente encontrar para torná-lo SÁBIO E LIVRE.

- Um Bruxo não inveja o seu semelhante porque ele sabe que a cada um é dado de acordo com a sua necessidade mas se ele é mesmo um BRUXO vai ter força e coragem suficientes para lutar e vencer pois aos olhos dos deuses a injustiça não é, nunca foi e nunca será agradável.

- Um Bruxo não enfrenta dificuldades, enfrenta DESAFIOS.

- Um Bruxo não desacata os seus deuses. Espera que com o tempo e com a sua reforma interior ele venha a compreender porque os deuses exigem mais dele que dos outros.

- Um Bruxo não faz inimigos porque já tem consciência que ele mesmo é o seu maior inimigo. 

- Ninguém tira nada de um Bruxo. Para um Bruxo conceitos como maldade e bondade precisam ser substituídos por "ignorância" e "conhecimento" respectivamente.

- Um Bruxo nunca é um Desgraçado (muito pelo contrário: são as pessoas que mais recebem bênçãos).

- Um Bruxo NUNCA perde a esperança e, muito menos, permite que arranquem-na do seu coração.

- Um Bruxo não permite brigas e desfaz os desentendimentos mesmo antes deles se manifestarem.

- Um Bruxo nunca carrega a negritude na Alma.

Quem não se enquadra nestes padrões sequer deve ter o direito de proclamar-se BRUXO.

Estou total e completamente aberta às vossas ponderações sobre o que acabei de escrever.

Um bruxo para ser realmente BRUXO precisa ter Humildade para ouvir críticas sem sentir-se ofendido porque só se é realmente BRUXO quando já se aprendeu a dominar completamente o EGO.

Bênçãos de Bel!

AnkhNuit em 16/11/2005

Continuar lendo ››

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Palavras de um Xamã

Cordiais agradecimentos a minha amiga Sí-Raven do blog "Mensagens do Corvo"

“Na minha tradição, a gente costuma dizer que a tristeza é a perda do poder pessoal. Esse poder é interno, é o poder do ser, da alma. Infelizmente, o homem passou a acreditar que tudo que ele precisa só pode ser encontrado no outro ou no mundo externo. 

É como se a afirmação da vida dependesse única e exclusivamente da atenção do outro, de uma situação política, histórica ou de um bom posicionamento social e profissional. Ele está totalmente voltado para fora, buscando de uma forma insana a sua felicidade. É preciso inverter esse movimento, retornando à imensa força que está esquecida dentro de nós.

A causa verdadeira das grandes tristezas está na alma, no ser interno. E onde que esse ser interno encontra vida, beleza e força? Ele basicamente necessita perceber que ele próprio é muito maior que o seu momento, ele é parte de um grande complexo chamado vida e esse grande complexo se nutre de coisas essenciais e simples como uma respiração saudável, um nascer e um pôr-do-sol, uma noite enluarada, estrelada, essa imensidão que se encontra dentro de nós. E esse alimento leva para o homem ingredientes que vão determinar uma maior ou menor qualidade dos seus pensamentos, emoções e ações. Temos que ser responsáveis por tudo isso.  

A meta de todo ser humano deveria ser a conquista de um pensamento lúcido, emoções equilibradas e uma ação justa: esse é um homem feliz. Esse é o princípio da espiritualidade, o seu eixo. E com esse eixo você combate a tristeza e as dificuldades com tranqüilidade e vai superá-las, transformando a si próprio. Na verdade, o poder de cura está dentro de cada um. Nós somos, ao mesmo tempo, o veneno e o antídoto. Nós, pajés, não somos a cura. Somos um veículo capacitado para restituir ao doente a sua própria força de cura.

A grande doença da atualidade é a doença da alma. O ser humano esqueceu da sua alma, está adormecido e conseqüentemente se fechou para as forças da natureza, porque alma e natureza caminham estritamente juntas, são mãe e filha. Todo o desequilíbrio que nós temos hoje manifestado está nesse eixo, e é por isso que a grande questão do século XXI é a questão ecológica-espiritual. Uma não pode ser trabalhada sem a outra.
Uma doença é uma poluição interna, uma poluição do seu ar. Logo, do seu pensamento; Ou uma poluição das suas águas. Logo, de suas emoções. Ou uma poluição do seu fogo, que é a sua vontade interna, seu eu. E finalmente, é uma poluição da sua terra, que é seu corpo físico. 

É nesse sentido que a questão da cultura indígena surge nestes tempos para ser percebida de uma outra maneira, inédita, com toda a força da base espiritual que ela pode fornecer, para que finalmente possamos fundar uma nação. (...) Uma nação se funda a partir de raízes, e as nossas mais profundas raízes passam por essa rica tradição espiritual do povo indígena.” 


Pajé Kaká Werá 
Continuar lendo ››

domingo, 18 de novembro de 2012

Por que nos dizemos Bruxos e Bruxas?

Por: Nuvem que Passa

O termo bruxaria é um termo que sempre desperta reações. Ele está tão associado a coisas "escuras e maléficas" que algumas pessoas questionam se deviamos mesmo usar este termo para identificar estas práticas pagãs de que fazemos uso, como instrumental de nossa ligação com os Deuses.
 
Mas voltemos ao passado, vamos voltar ao tempo em que mulheres e homens diferentes, que incomodavam os poderes estabelecidos, eram cruelmente torturados.
 
Poucos percebem que a tortura, para confessar bruxaria, era uma tortura similar a que os serviços secretos ainda usam hoje, para extrair informações sobre as reais práticas dos que eram depois sacrificados a fogueira, num ritual necromante, para imprimir na anima mundi, na alma do mundo, um medo à magia, ao conhecimento dos povos naturais. 
 
O saber dos povos naturais foi progressivamente sendo destruído por um conluio de forças que tem uma de suas principais forças começando a atuar no pacto nefasto de Júlio César e seus asseclas com Cleópatra e seu clero, quando os conhecimentos passaram a ser sistematicamente perseguidos e um simulacro de religião foi criada, com nitida função de criar servos, de dominar.
 
Os exércitos de guerreiros iam se tornando mercenários brutais e os sacerdotes iam se tornando mercadores de almas.
 
Júlio César destrói a biblioteca de Alexandria e então mais tarde, o Império Romano assume a religião cristã, isto é, cria uma versão da religião cristã para si, e com as armas, a vocação das legiões ainda em sua egrégora, sai a destruir Cátaros, Albigineses e depois cruzadas rumo ao Oriente, guerras de conquista, a invasão destas terras brasilis e de todo o continente, a escravização ou massacre de populações nativas tanto aqui como na África.
 
Fomos doutrinados para crer que o saber dos povos nativos é inferior, selvagem, supersticioso, que só a gloriosa tradição do positivismo vinda dos conquistadores é válida.
 
Essa prisão já foi imposta no próprio continente de onde vem os conquistadores, ali já perseguiram e julgam ter destruído todos os elos do saber dos povos nativos que ali também viveram.
 
Julgam que o racionalismo venceu e o saber místico e mágico foi erradicado.
 
Rindo disso, em menires, em lugares sagrados, dentro de capelas e igrejas que os conquistadores construíram em cima de lugares de poder, herdeiros e herdeiras desse Saber Ancestral continuam ritualizando e ao ritualizarem reatualizam o mito.
 
Então a Era-Industrial, os paradigmas da Era-Industrial tomam os povos, as cidades crescem, as pessoas vão perdendo o elo com os campos, com a natureza. Poucos se lembram que é o ouro arrancado de Hy Brasil, sob a vergasta do conquistador, com o sangue dos escravos índios e africanos, que migra de Portugal para a Inglaterra e faz acontecer a Revolução Industrial.
 
O mundo muda, os paradigmas mudam, o povo natural é ainda mais desprezado e seu saber relegado a condição de superstição grosseira.
 
O orgulhoso materialismo positivista arrogantemente pretende dizer o que é real e o que não é. Onde devia dizer "não entendo", ou "sequer percebo" dizem "não existe".
 
Campos, pagus, pagãos, povos dos campos, em sintonia com a vida, com a natureza. Tais valores passam a ser tido como menores, sinal de atraso.
 
Urbes, cidades, povos urbanos, isolados da natureza, mas ainda dela dependem. O povo da cidade é tido por culto, intelectualizado.
 
O mundo passa a ser dividido em nações "desenvolvidas", "industrializadas" e nações "subdesenvolvidas", "não industrializadas" .
 
O preço dessa "revolução industrial " é visível hoje na destruição da camada de ozônio, na extinção de espécies animais e vegetais, num caos social que gera violência e tensão em várias escalas.
 
Lhes pergunto: Teria acontecido uma revolução industrial como essa, em povos com a ligação plena da Terra como os nativos?
 
A Revolução Industrial aconteceu na forma que ocorreu porque a Vida e a Terra foram coisificados. pessoas se tornaram "mão de obra" e a Natureza "fonte de matéria prima".
 
E cá estamos neste caos ecológico e social tremendo, que combinados com as potentes armas que existem podem exterminar toda a vida sobre a Terra.
 
É total ilusão acreditar que o modelo da revolução industrial é o único modelo possível de desenvolvimento tecnológico.
 
Os Bruxos e Bruxas foram mortos, seu saber perseguido e quase extinto porque falavam de uma realidade viva, de uma natureza viva e consciente e assim, os caminhos que propunham eram caminhos onde a tecnologia viria na forma de uma tecnologia branda, não agressiva ao meio ambiente, onde os seres humanos continuassem a desenvolver um estilo de vida que não fosse o dos escravos e senhores, perpetuados em diferentes formas na presente organização social.

A guerra entre conquistadores e povos nativos sempre foi uma guerra pelo controle da realidade.
 
Os povos nativos em sua quase totalidade optam por abordagens harmônicas e empáticas com a natureza, enquanto os povos conquistadores estão sempre preocupados com seu poder e subjugação de outros, pouco percebendo o que acontece a sua volta além de seus interesses, tendo sempre atitudes desarmônicas.
 
A partir dos valores dos povos nativos, hoje usando mesmo alguns dos conhecimentos oriundos desta civilização tecnológica que aí está, podemos criar uma outra realidade, onde o mundo pode continuar seu fluxo, sem necessitar deste modelo de destruiçao progressiva que hoje domina.
 
Utopia?
 
Não, magia!
 
Outros povos desenvolveram outros estilos tecnológicos, Maias, Anasazi e outros povos que migraram para outras condições da Realidade quando do ínicio das crises neste mundo, desenvolveram estilos de tecnologia que hoje fazem parte do chamado "fenômeno ufológico".
 
Nós ficamos presos nesta senzala, que é a pretensa realidade, mas outros povos migraram para outras condições da realidade, outros mundos e dimensões e ali continuaram seu ciclo evolutivo.
 
Nos visitam quando os conquistadores de plantão cochilam.
 
Estamos entrando na Era Pós Industrial.
 
Touraine, Toffler, Domenico de Masi, são muitos os que abordam este fato, que a Era Industrial fica para trás como um parenteses num caminho que liga os paradigmas da nova fase histórica com os da chamada "primeira onda" de Toffler, valores como busca de uma produção orgânica, valorização do sentir e da intuição tanto quanto do pensamento sistematizado, enfim valores ecológicos , voltam a ser respeitados e considerados vitais para a sobrevivência saudável do ser humano, pois basta um olhar crítico sobre o mundo para perceber que a sociedade que vivemos não é saudável.
 
E o suporte filosófico e místico não vem de religiões dogmáticas que foram usadas através do tempo para dominar as pessoas, onde culpa, medo e insegurança são estimulados nos (as) "seguidores".
 
O paganismo, a religião da Terra, o religar-se à Terra enquanto ser vivo e consciente é um caminho que leva à magia e a vida.
 
Em homenagem sincera a tantas mulheres valorosas, homens corajosos, que entregaram suas vidas às chamas, que resistiram a tortura mas nada revelaram dos segredos, em homenagem a estes heróis e heroinas que com seu sacrificio salvaram outros para que a tradição continuasse nós nos chamamos bruxos e bruxas.
 
Porque hoje podemos, nós seus herdeiros(as) espirituais, dançar em praça pública, dizermo-nos publicamente pagãos (ãs) e sentir que uma nova fase da História se aproxima, por isso nos dizemos bruxos e bruxas.
 
E podemos ver além da confusão que os que sabem que vão perder o poder estão criando para que não percebamos o sol da primavera retornando, porque temem a verdade, a constatação esta civilização construida no gelo da ganância e egoísmo, ruirá por si.
 
Os que fizeram seus impérios e suas armas de poder no gelo da realidade vazia e estéril que criaram temem que redescubramos a magia, pois o calor da magia os ameaça pela sua simples existência.
 
Por isso nos chamamos Bruxos e Bruxas, por isso temos caldeirões e colheres de pau, pilões, vassouras e outros instrumentos que usamos para tecer nossas magias, porque nestes simples ato deixamos nossa condição isolada e nos irmanamos em vasta corrente que além do tempo e espaço conectada está com os Deuses. 

Pois em cada ato mágico, em cada rito que ritualizamos uma onda de energia vence tempo e espaço e toca nossos antepassados espirituais enquanto ardem na fogueira dos conquistadores, com nossa magia viva hoje lhes dizemos:
 
- "Coragem, venceremos!"
 


Guerrero/ Nuvem que passa

Continuar lendo ››

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Os Poderes do Morcego

A MAGIA DA NATUREZA

Pássaro e demônio, amigo e feiticeiro, fantasma e deus tribal, ele é apenas um mamífero alado.

OS PODERES DO MORCEGO

O Morcego é um animal com asas de aspecto de couro e de aparência hedionda, uma criatura das sombras infernais. Uma espécie – o morcego-vampiro – é notório sugador de sangue. As  características físicas do morcego e sua habilidade aparentemente sobrenatural de perseguir suas vítimas na escuridão completa são largamente responsáveis pela reputação aterradora, que adquiriu através dos séculos, como uma criatura de poderes ocultos.

O Morcego assumiu algumas qualidades de dois símbolos: o pássaro (símbolo da alma), e o demônio (criatura das sombras) e tem sido representado no folclore como feiticeiro e amigo, como fantasma e diabo, e ocasionalmente, como deus tribal.

Os chineses, preferindo uma posição mais amena em relação ao morcego, afirmam que ele voa com a cabeça baixa por causa do peso de seu cérebro. Êsopo descreve o vôo noturno como tentativa de fugir  de seus credores. Mas na maior parte do mundo, o morcego é tido como uma criatura horrível , misterioso ente da noite, símbolo da morte para os irlandeses, fantasma para os índios da Colúmbia Britânica e a corporificação dos mortos para os negros da Costa do Marfim.

Uma criatura da escuridão, o morcego há muito vem sendo associado ao diabo, numa forma de horror que é difícil afastar, mesmo entre os civilizados.
 
Na Europa, Ásia e América, o aparecimento repentino de um morcego numa casa é predição da morte de um de seus ocupantes. Na China, contudo, o morcego simboliza uma vida longa e cheia de êxitos.

Na Idade Média, era indiscutível a crença de que o diabo constantemente assumia a forma de um morcego e, por causa disso, ainda hoje, os camponeses da Sicília queimam os morcegos vivos ou os pregam de asas esticadas, em suas portas.

Espírito maligno em nosso corpo

Espíritos malignos em forma de morcegos, segundo se acreditava, podiam entrar em nosso corpo: e só era possível expulsá-los com a ação de exorcistas consagrados. 

Os curandeiros-feiticeiros da Nigéria, que são grandes cultores dessa arte, habilmente retiram morcegos e sapos pela boca do paciente, por acaso atacado por esses males. 

Entre os negros dos Estados Sulinos dos Estados Unidos, maus espíritos são arrancados do corpo humano e injetados no corpo de morcegos, que fogem para o vale das sombras com sua carga macabra.

Na obra Remaines of Denis Granville, há uma anedota que descreve o seguinte: um cirurgião, um assistente e um padre atendem a um paciente, profundamente atacado de melancolia. Enquanto o padre reza, o cirurgião faz uma pequena incisão no lado do paciente e, ao mesmo tempo o assistente liberta o morcego que havia trazido numa caixa escondida. O paciente acredita que o mau espírito foi arrancado de seu corpo e sara. No Brasil essa anedota tem uma continuação: “meses mais tarde o cirurgião explica ao paciente que tudo fora uma encenação, porque notaram que o seu mal era psíquico e não físico”. Aí o paciente começa a ficar de novo doente, dizendo: “Por isso é que eu ainda sinto o morcego voar dentro de mim”.

La Voisin, a feiticeira e aborticionista do século 17 na França, usava sangue de morcego para suas missas negras. Uma coisa hedionda encontrada as vezes em rituais dessa natureza era um morcego que havia sido afogado em sangue, recurso usado para libertar energia psíquica. E o sangue de morcego era constantemente mencionado como elemento decisivo para o vôo das feiticeiras (uma espécie de gasolina enfeitiçada) que lhes dava a habilidade do animal para suas revoadas das trevas.

Por causa de sua condição de detentor de poderes mágicos, o morcego foi tido, por muito tempo, como um amuleto protetor contra a malignidade do diabo, e como um elemento para atrair a sorte. Em certas partes da Alemanha, acreditava-se que o coração de um morcego, atado ao braço com um cordão vermelho, traria ao portador, sorte nos jogos de cartas. No Tirol austríaco, o feliz dono de um olho esquerdo de morcego podia tornar-se invisível aos outros no momento em que quisesse.

Algumas gotas de sangue mágico

O morcego tornou-se não apenas o animal encantado dos homens de uma tribo de Nova Gales do Sul, como seu símbolo sexual.


A mesma associação de crenças levou donzelas da Europa Central a conseguir a conquista dos namorados, usando algumas gotas de sangue de morcego em seu copo de cerveja.

O morcego foi, muitas vezes, adorado como entidade divina: era o deus supremo de índios americanos da costa do Pacífico. Eles o chamavam de Chamalkan. O poderoso deus-morcego de Samoa invariavelmente liderava o grupo, quando se marchava para a guerra. Na Europa, de acordo com uma velha lenda, o morcego entrou na guerra entre animais e pássaros, mas em dúvida quanto ao lado que seria de fato seu, lutou por ambas as partes.

Nas lendas de muitos índios americanos da região Norte do país, o morcego aparece na surpreendente situação de herói galante, defensor desprendido da humanidade em crise. A mais alegre e positivamente mais virtuosa versão dessa crença está sem dúvida, na moderna figura dos heróis americanos das estórias em quadrinhos, o Batman.

Radar e diabo lado a lado

Na Inglaterra entre os camponeses, era crença que o morcego furtava filé das casas entrando pela chaminé. Por isso uma canção popular dizia: “Vem morcego da chaminé, que lhe dou um pedaço de filé”

Ainda na atualidade, o sangue de morcego é usado na magia negra, especialmente quando se deseja ferir inimigos. 

Apesar da ciência saber o que faz o animal voar às cegas, no escuro, sem bater em nada, continua a idéia do diabo sempre associada à do morcego. Ele voa na escuridão, com movimentos certeiros, porque é capaz de sentir obstáculos, da mesma forma que o radar.

Os caboclos brasileiros sabem como pegar morcegos: fincam uma fina vara de bambu no chão e agitam freneticamente. A parte de cima da vara produz ruídos muito agudos, alguns dos quais inaudíveis ao ouvido  humano. O morcego recebe os sinais e voa  na direção da vara, bate e geralmente morre.

Além da aversão natural que o animal provoca, as mulheres tem outra razão para impedir que o morcego se aproxime de seus cabelos: pode enrolar-se neles e somente será dali tirado com o uso de uma tesoura, manipulada por um homem. Também aí nessa superstição há implicações sexuais, eróticas, pela associação homem-mulher.


Em muitos lugares, no entanto, o morcego pode indicar acontecimentos bons: Na Inglaterra, em certas áreas agrícolas, o vôo do morcego ao entardecer, é sinal de tempo bom pela frente.



Retirado da revista: Homem, Mito e Magia. Vol. I nº VI Pág. 124 a 126. Editora 3. São Paulo. 1973
 
 
 
 
 
Continuar lendo ››