Este conto existe em duas versões diferentes em que a mais antiga remete para uma obra perdida — o The Book of Druimm Snechtai ou The Book of Drumsnat —, que terá sido composta num mosteiro no condado de Monaghan, entre os séculos VIII e X. A história que aqui se apresenta é baseada nessa versão, conhecida através de manuscritos posteriores. O The Book of Druimm Snechtai ou The Book of Drumsnat terá também contido a versão mais antiga de Togail bruidne Da Derga (A Destruição da Estalagem de Da Dergà), que também contamos neste volume. A versão mais tardia, por sua vez, surge no Lebor na hUidre ou em The Book of Dun Cow (O Livro de Dun Cow). Foi publicado por A. G. Van Hemel em «Compert ConCulainn and Other Stories »: vol. 111 de Mediaevai and Modern Iriíh Seriem, Dublin Institute for Advanced Studies, 1956. Encontra-se também traduzido por Thomas Kinsella, The Táin, Oxford, Oxford University Press, 1969.A personagem Dectora da peça de Yeats, The Shadowy Waters (1911), inspira--se em parte em Deichtine (in Collected Plays,Londres & Basmgstoke, Papermac, 1982, PP. 145-167).
Baseámos esta história na tradução de Jeffrey Gantz em Early Irish Myths and Sagas, Harmondsworth, Penguin Books, 1981.
Retirado do Livro: Mitos e Lendas Celtas: Irlanda - Autora: Angélica Varandas
O Nascimento de CuChulain
(Compert ConCulainn)
(Compert ConCulainn)
Um dia, surgiu na planície perto de Emain Macha um bando de pássaros que se alimentou de todas as ervas e plantas que aí nasciam, deixando a terra despida. O rei Conchobar, preocupado com o estado da terra e sua devastação, decidiu aparelhar as suas nove carruagens e ir afugentar as aves, acompanhado pela sua filha, Deichtine, e pelos seus mais bravos campeões, como Conall e Lóegure, e até por Bricriu. Mas, uma vez chegados perto dos pássaros, ficaram admirados com a sua elegância e deixaram-se encantar pela beleza do seu voo e da sua música.
Assim sendo, ao verificar que três grupos de aves abandonavam o grupo inicialmente composto por nove bandos, para se dirigirem para Bruig na Bóinde, o rei e os seus homens resolveram segui-los. Mas a noite chegou, trazendo um nevão, e os ulidian foram obrigados a procurar abngo. Bricriu e Conall encontraram uma casa onde foram acolhidos por um casal, mas Bricriu achou que a casa era modesta de mais para os receber. Ainda assim, não tendo alternativa, decidiram pernoitar nessa casa onde foram recebidos com muita comida e muita bebida. O seu anfitrião disse-lhes que a sua mulher se encontrava em trabalho de parto, e Deichtine correu a ajudá-la. Nasceu, por fim, um rapaz ao mesmo tempo que, à entrada da casa, uma égua dava à luz dois potros. Estes foram oferecidos ao bebé como presente, e foi a própria filha do rei que o criou como seu.
Quando chegou a manhã, os ulidian acordaram no meio de nenhures, sem sinal de nenhuma habitação nas redondezas, nem de aves no céu. Apenas o bebé e os dois potros se encontravam junto deles como prova de que não haviam sonhado. Regressaram a Emain Macha, onde Deichtine continuou a tratar da criança, que, contudo, morreu passados poucos anos. A filha do rei entregou-se então à dor e ao desespero, até que, cansada de tanto chorar, ficou com sede e pediu uma taça com água. Sempre que levava a taça aos lábios, surgia dentro dela uma criatura pequenina que saltava na direcção da sua boca. Mas, quando afastava a taça e olhava lá para dentro, não conseguia ver nada.
Nessa mesma noite, Deichtine teve um sonho estranho. Sonhou com um homem que se apresentou como Lug, filho de Eithliu. Disse-lhe ter sido ele a atraí-la, por intermédio das aves, a Bruig na Bóinde, que a casa onde havia estado era na realidade a sua casa e que ela trazia na barriga um filho dele que se chamaria Sétanta a quem se destinavam os dois potros.
Deichtine ficou grávida e, como ninguém sabia quem era o pai do bebé, pensaram que havia sido Conchobar, o seu próprio pai, a concebê-lo, dado que haviam dormido lado a lado na casa misteriosa na noite em que o rei se havia embriagado pelo muito vinho que havia bebido. De modo a travar estas acusações, Conchobar ofereceu a mão de Deichtine a Súaltim, filho de Roech. Esta, porém, envergonhada por se deitar, já grávida, junto do marido, esmagou a criança no ventre, vindo logo em seguida a engravidar de Súaltim de quem teve um filho.
Este conto pretende explicar a dupla paternidade de Cuchulain, que, como Conare Már, possui dois pais: um deus e um mortal. Vem assim justificar as características divinas que se encontram associadas ao herói, como a sua força e coragem sobre-humanas. Essas, por sua vez, são anunciadas por acontecimentos natureza transcendental que acompanham o nascimento de Cuchulain, nomeadamente a queda de neve e o aparecimento de um bando de aves que, como é comum nestes contos, são mensageiras do Outro Mundo. O facto de a acção decorrer, não no Ulster mas em Bruig na Bóinde, local onde se desenrolam, por excelência, os contos do Ciclo Mitológico, leva-nos a crer que aqui se pretende evidênciar o carácter divino do herói, em contraposição com a sua humanidade. Sobre o seu pai, Lug, falamos, com algum pormenor, na conclusão deste volume. O nascimento de Cuchulain assemelha-se ainda ao nascimento do herói galês Pryderi, tal como nos diz o Mabinogion. No primeiro ramo dos contos galeses também o nascimento de Pryderi é acompanhado pelo nascimento de um potro o herói recebe posteriormente como presente. Tal como Pryderi, de resto, o nome com que Cuchulain nasce não é aquele com que vai permanecer. E ainda interessante notar que Cuchulain possui um estatuto de excelência no Ulster ao ser filho de uma filha ou irmã de Conchobar, o que confirma a descendência matrilinear dos Celtas, que viria a ser também central nas lendas arturianas, nas quais verificamos que muitos dos cavaleiros da Távola Redonda, como Gawain, são dotados de grande prestígio em Camelot por serem exactamente filhos de irmãs do Rei Artur.
O nome Sétanta significa «aquele que conhece as estradas e os caminhos».
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