Durante quase 700 anos, a Igreja e Estado se uniram numa prévia do totalitarismo
Por Eduardo Szklarz
Por Eduardo Szklarz
Ainda era madrugada quando uma multidão tomou conta da Plaza del
Volador, na Cidade do México, naquele 11 de abril de 1649. Muita gente
tinha viajado dias a fio para garantir um dos 16 mil assentos perto do
palco – uma gigantesca plataforma de 860 metros quadrados adornada com
figuras de crianças tocando trombetas. Depois de um mês de preparativos,
chegara o dia do auto-de-fé, a representação terrena do Dia do Juízo. A
grande atração da festa eram 13 prisioneiros acusados de professar o
judaísmo em segredo. Eles já haviam sido perdoados uma vez, mas
reincidiram no crime. Os inquisidores os chamavam de “relaxados ao braço
secular” – ou seja, saíam da responsabilidade da Igreja para serem
mortos pelas autoridades do governo.
Ao amanhecer, a procissão com
os acusados deixou a sede do Santo Ofício em direção ao palco para a
celebração da missa. No começo da fila, 57 bonecos (as “efígies”), que
representavam hereges fugidos ou já mortos, eram carregados. Depois iam
dezenas de prisioneiros “reconciliados”, que teriam direito de viver
desde que não voltassem a cometer heresias. Atrás deles, os 13
condenados à morte, segurando uma cruz e vestindo um chapéu em forma de
cone (chamado coroza) e o sambenito (túnica com desenhos do demônio). Os
inquisidores, a cavalo, vinham por último na fila do cortejo, seguidos
por uma mula enfeitada com sinos de ouro e prata, que carregava um baú
com os relatórios dos processos e as sentenças dos acusados.
Depois
da missa, os relaxados ouviram sua sentença de morte no palco. Quase
todos garantiram ser bons cristãos e pediram misericórdia. Apenas um,
Tomás Treviño de Sobremonte, admitiu que era judeu e não implorou
perdão. Por isso, foi queimado vivo. Os outros tiveram um destino mais
piedoso: o garrote – e só depois foram jogados, já mortos, na fogueira.
Os bonecos também arderam nas chamas. Como os hereges que eles
representavam não estavam presentes, esse ritual era chamado de “queima
em efígie” e, na prática, servia para encher de vergonha seus parentes e
descendentes. Já os reconciliados receberam penas “leves”, como
açoites, torturas e confisco de bens. A festança varou a noite, com a
plateia alvoroçada.
O auto-de-fé de 1649 foi talvez o maior já
realizado nas Américas. Mas hoje os historiadores sabem que espetáculos
assim eram apenas a ponta do iceberg do que realmente foi a Inquisição.
Agindo em nome de Deus, mas movida por interesses políticos e
econômicos, ela espalhou o medo e a discriminação ao longo de quase sete
séculos. Os inquisidores e seus representantes agiram na Europa, Ásia e
América, lugares tão variados como as vítimas que perseguiram: judeus,
muçulmanos, hindus, protestantes, bruxas, bígamos, sodomitas ou quem
quer que cometesse o crime de ser ou pensar diferente.
Origens medievais
Os historiadores fazem distinção entre a Inquisição medieval (ou
papal), que vigorou na França, Itália e outros países europeus a partir
do século 13, e a Inquisição moderna, que alcançou seu apogeu na
península Ibérica entre os séculos 15 e 18. “Não há uma data certa do
início da Inquisição medieval. Ela foi fruto de uma longa evolução na
qual a Igreja se sentiu ameaçada em seu poder”, diz a historiadora Anita
Novinsky, autora de Inquisição. “Os questionamentos sobre a verdade
absoluta do catolicismo aumentaram a partir do século 13, e os
indivíduos que partilhavam dessas idéias eram chamados de hereges.”
O termo “heresia” vem do grego hairetikis, que significa “aquele que
escolhe”. De fato, na Grécia antiga a heresia era apenas uma escolha do
que a pessoa achava melhor para si, sem qualquer conotação religiosa. Na
Idade Média, porém, a Igreja expandiu esse conceito de tal forma que a
heresia passou a abranger todas as opiniões contrárias aos dogmas
católicos. O combate aos hereges começou a tomar forma com um tratado
escrito no século 12 pelo abade Pedro, o Venerável, que chefiava a
abadia de Cluny, na região francesa da Borgonha. Ele afirmava que, para
eliminar a heresia do seio da Igreja Católica, que chamava de “Corpo de
Cristo”, era necessária uma purgação, composta de quatro fases:
investigatio (investigação), discussio (discussão), inventio (achado) e
defensio (defesa). Aquele era o passo-a-passo da futura Inquisição.
“Desse modo, o tratamento aplicado à infecção no Corpo de Cristo
começava com pesquisas [daí o termo ‘inquisição’] que os bispos e seus
representantes realizavam antes da criação de tribunais especializados”,
diz o historiador britânico John Edwards, da Universidade de Oxford. ⇨
Confissão forçada
Principais métodos de tortura
► A Roda
Para
forçar a vítima a falar, os inquisidores amarravam-na na parte externa
da roda com brasas embaixo. Assim, o corpo era queimado à medida que a
roda ia girando. As articulações também
sofriam sérios danos. Essa
tortura foi muito utilizada na Inquisição medieval, em países como
Alemanha e Inglaterra. Outra verso da roda tinha ferros pontiagudos, em vez de brasas, para rasgar a pele.
► O Potro
O réu ficava deitado sobre uma cama com ripas, com pernas e braços
amarrados por cordas. Usando um arrocho, os torturadores apertavam as
cordas até dilacerar a carne. Como os métodos de confissão eram mantidos
em segredo, os inquisidores evitavam utilizar essa tortura nos 15 dias
anteriores ao auto-de-fé, para que o povo não visse as cicatrizes do
réu.
► O Pêndulo
A vítima era amarrada pelos pulsos, atrás das
costas, com correias de couro. Em seguida, era levantada por cordas e
roldanas, solta bruscamente e segura de novo antes de o corpo alcançar o
solo. Os solavancos destroncavam as juntas e podiam aleijar. Esse
tormento tinha variações, como a polé: a vítima era amarrada também
pelos tornozelos e erguida de barriga para cima.
► A Tortura d’água
Nessa espécie de afogamento, o acusado era preso em uma mesa de barriga
para cima. Os inquisidores abriam sua boca e jogavam água por um funil,
fazendo-o engolir vários litros. Também colocavam panos molhados dentro
da garganta, que podiam causar asfixia. Mas, como nos outros métodos, o
objetivo não era matar, e sim forçar a confissão de heresias e a
delação.
⇨ Para que a caça aos hereges surtisse efeito, era
necessário o apoio do Estado. “Embora a Inquisição medieval tenha sido
idealizada e dominada pelo papa, ela contou com o auxílio dos
soberanos”, diz Anita. Isso mostra o caráter político das perseguições,
numa época em que não havia clara separação entre Igreja e Estado. O
divisor de águas nessa empreitada foi o 4º Concílio de Latrão, convocado
pelo papa Inocêncio III em 1215. Seu principal objetivo era resolver o
problema dos cátaros (ou albigenses), um grupo de cristãos do sul da
França que contestava os dogmas da Igreja. Ficou decidido que quem se
negasse a aceitar a fé católica seria excomungado e entregue à
autoridade secular (ou seja, aos funcionários da coroa) para ser
castigado, pois a Igreja não podia derramar sangue.
O sacerdote
espanhol Domingos de Gusmão botou o plano em prática com a criação da
Milícia de Jesus Cristo, cujos membros estavam dispostos a pegar em
armas para defender a fé. “Esses milicianos foram os primeiros a usar
técnicas de crueldade e violência, copiadas depois pela Inquisição
moderna”, diz Anita. Como muitos cátaros fugiram da França para o reino
de Aragão, na atual Espanha, não tardou para que os inquisidores
realizassem lá violentos espetáculos de massa, que seriam os precursores
dos autos-de-fé modernos – em 1314, por exemplo, seis hereges foram
jogados no fogo.
O método de perseguição dos inquisidores era
simples: eles visitavam os povoados, em geral acompanhados de
funcionários da Justiça local, e convocavam a população na igreja
principal. Cada pessoa tinha que confessar seus erros e os dos amigos e
parentes no prazo médio de 30 dias. Os processos eram feitos na base da
delação, dos rumores, do diz-que-diz, e contavam com espiões locais
conhecidos como “familiares” – homens influentes da sociedade. Se os
inquisidores não juntassem provas de heresia naquele prazo, não tinha
problema: os suspeitos eram condenados mesmo assim a penas como
excomunhão, confisco de bens, prisão, açoite e mesmo morte. As fogueiras
davam um caráter mítico aos autos-de-fé, que atraíam o povo com
promessa de redenção.
O mais famoso inquisidor medieval foi o
teólogo catalão Nicolau Aymerich, autor do Directorium Inquisitorium,
uma espécie de manual da Inquisição. Ele dizia que o segredo era a base
do trabalho, pois protegia os delatores. A obra também “ensinava” como
identificar feiticeiras e contribuiu para a histeria da caça às bruxas,
um fenômeno paralelo à Inquisição que chegou ao auge entre os século 15 e
17. Os historiadores estimam que 50 mil pessoas (75% delas mulheres)
tenham sido queimadas por suspeita de bruxaria, pacto com o diabo ou por
“lançar mau-olhado” em províncias de países como Alemanha, Suíça,
Polônia, Dinamarca e Inglaterra.
Novas motivações
“A
Inquisição medieval entrou em decadência com o Renascimento no século
15”, diz a historiadora Neusa Fernandes, vice-presidente do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro. “Porém, ela seria revigorada
na Espanha e em Portugal, perseguindo não apenas os hereges, mas
sobretudo uma nova gama de criminosos: os judeus.” Mas por que eles?
Tudo começou no século 4, quando o cristianismo deixou de ser uma seita
perseguida para se tornar a religião oficial do Império Romano. Já em
325, o Concílio de Nicéia culpou os judeus pela morte de Jesus (acusação
só retirada em 1965, no Concílio Vaticano 2o). Boa parte dessa
hostilidade procedia do próprio Novo Testamento – nele, há menções de
que os judeus sejam filhos do diabo e que se culparam pela morte de
Jesus. “Os Evangelhos foram escritos muitas décadas depois da morte de
Jesus por pessoas que não conheciam de primeira mão os acontecimentos de
sua vida, mas que viveram no clima de rivalidade que a incipiente
comunidade cristã mantinha com o judaísmo”, diz o historiador americano
Daniel Goldhagen, da Universidade de Harvard. Pregadores cristãos
trataram de falar mal dos judeus e, assim, a Europa medieval viu crescer
vários mitos: eles teriam chifres e rabos, fariam rituais com sangue de
crianças cristãs e seriam os responsáveis pela peste negra. ⇨
Mundo afora Portugal e Espanha "exportaram" o Santo Ofício para suas colônias
►Goa: o menor estado da Índia foi conquistado por Portugal no século 15
e se transformou em rota importante do comércio de especiarias. Em
pouco tempo, também virou palco da mais sanguinária das inquisições
portuguesas, que perseguiu principalmente hindus convertidos ao
catolicismo. De 1536 até o fim do século 17, mais de 3 mil pessoas foram
julgadas em 37 autos.
►Cartagena: o Tribunal da Inquisição foi
criado ali em 1610 para complementar os tribunais de Lima e do México na
América espanhola. Nos 201 anos seguintes, essa praia paradisíaca da
Colômbia ficou conhecida pelos autos-de-fé contra cristãos-novos,
bígamos e feiticeiras. Hoje é possível visitar o Palácio da Inquisição,
local das mais de 500 execuções, e conhecer a câmara dos tormentos e o
pavilhão das bruxarias.
►Cabo Verde: nem esse pequeno arquipélago
situado a 600 quilômetros da costa africana escapou do Santo Ofício, que
atuou na esteira do comércio de escravos. De 1536 a 1821, os
visitadores denunciaram 233 por judaísmo, 38 por blasfêmia, 104 por
feitiçaria, oito por bigamia, 85 por sodomia e 40 por desrespeito aos
sacramentos. Detalhe: a população da época não superava os 10 mil
habitantes.
⇨ Em 1215, o 4º Concílio de Latrão (o que condenou os
cátaros) proibiu o casamento entre judeus e não-judeus, impediu os
judeus de exercerem funções públicas e os obrigou a usar distintivos
sobre as roupas, como a estrela amarela imposta por Luís IX na França. O
anti-semitismo aumentava cada vez mais. A Inglaterra expulsou os judeus
de seu território em 1290 e a França, em 1306. A Espanha foi mais dura:
cerca de 4 mil foram assassinados em Sevilha apenas em 1391. Para
escapar da morte, milhares de judeus espanhóis procuraram o batismo.
Isso criou três novos grupos: os judeus que se salvaram dos massacres e
mantiveram a fé judaica, os que se converteram ao cristianismo mas
praticavam a religião secretamente (criptojudeus) e os que se
converteram de verdade (conversos). Estes últimos esperavam ter todos os
direitos dos cristãos. Mas, na prática, foi diferente. Eles continuaram
sendo culpados pelos males da nação e ganharam o apelido de marranos
(porcos).
As perseguições também tinham sua motivação econômica, já
que os judeus haviam alcançado postos importantes na economia e nas
universidades. A política racista imperou na Espanha através dos
“estatutos de pureza de sangue”. Eles asseguravam que nenhum descendente
de judeu ou mouro podia freqüentar universidades, ingressar em ordens
religiosas e militares ou ter cargos políticos. Os candidatos a esses
postos precisavam apresentar a “habilitação de genere”, uma espécie de
árvore genealógica que mostrava que não tinham entre os antepassados
nenhuma gota de sangue “impuro”. A essa altura, portanto, o velho
discurso religioso antijudaico tinha virado um discurso racial contra os
judeus convertidos. Cenário perfeito para o início da Inquisição
moderna.
Edição moderna
Poucos casamentos mudaram tanto a
história como o da rainha Isabel, de Castela, com o rei Fernando, de
Aragão. A boda de 1469 deu impulso à unificação da Espanha e selou o
destino dos judeus na península Ibérica. Logo que subiram ao trono, os
reis católicos viram que precisavam do apoio da Igreja e da burguesia
para consolidar seu poder. Também tinham de encher os cofres para
expulsar os mouros de Granada, o último bastião muçulmano na península
desde a invasão no século 8 pelos exércitos islâmicos. A solução?
Reeditar a Inquisição, tendo agora como alvo principal os judeus
convertidos, e usar os lucros dos confiscos das vítimas para financiar a
guerra contra os mouros.
O plano deu certo. Em 1478, o papa Xisto
IV autorizou a criação oficial do Tribunal da Inquisição na Espanha –
embora duvidasse das intenções religiosas, acabou aceitando a idéia para
manter a cooperação entre a coroa e a Santa Sé. “Apesar daas funções
santas que alegou, o Tribunal da Inquisição foi uma instituição
vinculada ao Estado e respondia aos interesses das facções do poder:
coroa, nobreza e clero”, diz Anita. Sevilha foi o palco do primeiro
auto-de-fé da Inquisição moderna em 1481, quando seis pessoas morreram
na fogueira. Segundo o historiador espanhol Andrés Bernáldez, mais de
700 convertidos seriam queimados e outros 5 mil presos ali até 1488.
“Diferentemente da Inquisição medieval, cujos inquisidores eram nomeados
pelo papa, na moderna eles eram nomeados pelos reis e atuavam por
intermédio dos tribunais criados nos reinos, com a autorização do papa”,
diz Anita. ⇨
Tribunais no Brasil
Embora quase não se fale
desse assunto, houve, sim, Inquisição no Brasil. E ela disseminou o
racismo aqui por mais de 200 anos. “A Inquisição nunca foi oficialmente
instituída no país, mas nem precisava. Qualquer religioso regional fazia
o papel de inquisidor”, diz a historiadora Neusa Fernandes, autora do
livro A Inquisição em Minas Gerais no Século XVIII. “Bispos, padres,
párocos, todos eram vigias, todos delatavam. A pessoa era presa, o
processo era aberto e ia para Lisboa.” O Tribunal da Inquisição
funcionava aqui através de representantes locais, os “comissários”. Eles
contavam com a ajuda dos “familiares”, homens influentes que espionavam
e faziam denúncias, e dos “visitadores”, funcionários do Santo Ofício
que vinham da metrópole para acompanhar os processos de devassa.
Estima-se que mais de mil pessoas tinham sido presas e levadas para os
cárceres de Portugal e cerca de 30 condenadas à morte na fogueira. A
maioria era formada por cristãos-novos, mas também havia acusados de
feitiçaria, blasfêmia, bigamia, sodomia, concubinato e até frades
apontados como fornicadores. Como o Santo Ofício sempre agiu no rastro
dos homens de negócio, que rendiam confiscos mais polpudos, a caçada
pegou para valer no século 18 com a descoberta do ouro em Minas Gerais. A
Inquisição exigia ainda que candidatos às ordens religiosas brasileiras
provassem que não tinham antepassados “hereges”. Documentos arquivados
na Cúria Metropolitana de São Paulo mostram, por exemplo, que o poeta
Cláudio Manoel da Costa foi recusado por “suspeita de sangue”.
⇨
Em 1483, Xisto IV autorizou a criação de tribunais em Aragão, Catalunha
e Valência. Quem assumiu como inquisidor-geral foi Tomás de Torquemada,
chefe do mosteiro dominicano de Santa Cruz em Segóvia. Torquemada
iniciava os processos com base em denúncias de todo tipo, inclusive por
carta anônima. Não era preciso provar nada e o acusado não sabia quem
era seu delator. Os tribunais julgavam dois tipos de crime. Os que eram
contra a fé (e tinham como acusados judeus, islâmicos e protestantes,
entre outros) eram mais graves e passíveis de morte. Já contra a moral
(acusados de bigamia, sodomia e bruxaria, por exemplo) eram punidos com
prisão e outros castigos mais leves. O confisco de bens valia para todas
as vítimas.
Com a grana dos confiscos, Fernando e Isabel
conseguiram derrotar os mouros em Granada em 1492, enquanto a Inquisição
começava a se expandir pelas colônias da América. Naquele mesmo ano, os
reis católicos decretaram a expulsão da Espanha de todos os judeus que
não aceitassem a conversão imediata. Quase 150 mil judeus atravessaram a
fronteira em direção a Portugal, enquanto outros 50 mil se dirigiram ao
norte da África e à Turquia. Os mouros da Espanha também tiveram que se
converter ao cristianismo. Seus descendentes seriam desterrados de lá
mais tarde, em 1609. ⇨
A "Lenda Negra"
No passado, alguns historiadores espanhóis enxergaram nos relatos
estrangeiros da Inquisição, feitos principalmente por protestantes ou
iluministas irreligiosos, como uma forma de propaganda inimiga, querendo
demonizar sua história e cultura. A isso o historiador Julián Juderías
batizou de Lenda Negra, no livro com o mesmo nome de 1914. Em alta
durante a ditadura de Francisco Franco, o termo é meio "maldito" hoje em
dia, mencionado por ultranacionalistas.
⇨ Em Portugal, até então,
cristãos, muçulmanos e judeus ainda mantinham uma boa convivência. Mas o
rei português dom Manuel I acabara de fazer um contrato de casamento
com Isabel, filha dos reis católicos espanhóis. E uma das cláusulas
exigia que ele expulsasse os judeus também de Portugal. Como os judeus
eram grandes negociantes e respondiam por uma parcela importante da
economia, o monarca preferiu transformá-los em cristãos-novos, com um
batismo forçado em 1497. Claro que muitos não abriram mão da fé com
aquele banho coletivo de água benta. Por isso, os portugueses começaram a
acusar os cristãos-novos de serem falsos cristãos. A violência explodiu
em 1506, numa missa de Páscoa no mosteiro de São Domingos, em Lisboa.
Um cristão-novo dissera que um suposto milagre era apenas um reflexo da
luz e foi espancado até a morte. A raiva contra ele se espalhou pelas
ruas, instigada por frades. Resultado: três dias de carnificina e cerca
de 2 mil mortos.
Em 23 de maio de 1536, o rei dom João III
conseguiu autorização definitiva do papa para instalar a Inquisição em
Portugal. Nos anos seguintes, as fogueiras dos autos-de-fé arderam em
Lisboa, Coimbra, Évora e outras cidades. Muitos judeus fugiram para
lugares onde podiam assumir sua identidade, como Amsterdã e Istambul.
Outros continuaram a professar secretamente sua fé nos porões das casas,
correndo o risco de serem pegos.
Legado totalitário
A
Inquisição acabou oficialmente em 1821 em Portugal e em 1834 na Espanha.
Depois disso, o Santo Ofício ainda vigorou na Itália e mudou duas vezes
de nome até, em 1965, passar a ser chamado de Congregação para a
Doutrina da Fé. No ano 2000, o papa João Paulo II oficializou o pedido
de desculpas pelos “erros cometidos a serviço da verdade, por meio do
recurso a métodos não-evangélicos”.
Para os estudiosos, o problema
da Inquisição vai muito além da quantidade de mortos: sua herança
discriminatória é sentida ainda hoje. “A Congregação para a Doutrina da
Fé advertiu e puniu teólogos contemporâneos que têm questionado alguns
aspectos da doutrina católica e a infalibilidade da Igreja”, diz Anita.
Um deles foi o brasileiro Leonardo Boff, condenado em 1984 pelo então
cardeal (atual papa) Joseph Ratzinger a um ano de “silêncio obsequioso”
por causa dos questionamentos à hierarquia eclesiástica expostos no
livro Igreja: Carisma e Poder. Durante o interrogatório, Boff se sentou
na mesma cadeira ocupada mais de 300 anos antes pelo físico Galileu
Galilei.
Mas o legado da Inquisição ultrapassa as fronteiras do
cristianismo. “Com seu caráter de polícia do pensamento, ela impôs um
estado de paranoia e perseguição institucional que é um claro
antecedente dos totalitarismos atuais”, diz o historiador inglês Toby
Green. Exemplo disso foi o regime nazista, que levou às últimas
conseqüências a noção de pureza da raça. Para Neusa Fernandes, o
trabalho do Santo Ofício continua vivo no racismo, na censura, no
controle moral, na miséria, na violência. Os movimentos fundamentalistas
atuais, embora de origens diversas, também compartilham a atitude dos
inquisidores. “Eles pensam que são donos de toda a verdade e que os
outros são hereges”, diz o escritor americano Richard Zimler, autor de O
Último Cabalista de Lisboa. “O líder do Estado Islâmico Abu Bakr
al-Baghdadi e os inquisidores portugueses do século 16 se entenderiam
muito bem, pois sua postura moral é exatamente a mesma.”
Entre mortos e feridos
Uma estimativa das vítimas da Inquisição moderna*
►Inquisição Espanhola
►34 1021 - Condenados
►31 912 - Queimados
►17 659 - Queimados em efígie
►Inquisição portuguesa
►29 590 - Condenados
►1 808 - Queimados
►633 - Queimados em efígie * Levantamentos feitos pelos historiadores
Juan Antonio Llorente (referentes à Espanha, entre 1481 e 1808) e Cecil
Roth (estimativas sobre Portugal). Não há dados sobre a Inquisição
medieval.
Saiba mais
A Inquisição, Anita Novinsky, Brasiliense, 2007
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